Doutor...
Doutooooooor... consegue ouvir-me?
Doutor? Dout... Está a ouv... Estou a perd... Não devo ter rede telepática nesta zona. Raios! Vou mudar de sítio.
E agora? Consegue ouvir-me? Concentre-se.
Está no escritório? Olhe, então estique-se no divã por mim, pode ser?
Obrigada. Sabe bem, não sabe?
A voz que está a ouvir no interior da sua cabeça não é imaginação, sou eu. Sim, eu!
Hum, ouvir no interior da cabeça... Questão curiosa esta. Se o nosso sistema auditivo implica que as ondas sonoras (externas) sejam recebidas no pavilhão auricular (pomposo, não é?) e encaminhadas para o chamado ouvido interno... como se chamará quando temos consciência de vozes que vêm de dentro?
Não, Doutor, não estou a falar das "vozes" que provocam a toma de antipsicóticos. Falo daquelas que nos preenchem a mente e entre as quais surgem diálogos infindáveis.
Será que ouvimos os nossos pensamentos ou... Diga Doutor? Como assim, não percebe o que se está a passar?
Hoje decidi optar pelo admirável mundo novo da telepatia. Diga lá, não estava à espera desta, pois não?
Andava aqui por casa, rodeada das cores, cheiros e sons do costume até que me apeteceu provar um pedaço de silêncio. É estranho, sabe. É... vazio... oco, mas enche-me a mente de tal maneira que quase parece rebentar.
Eis quando decidi ir à internet pesquisar sobre pacotes de telepatia pré-pagos. Comprei um online e, olhe, aqui estamos nós.
Dá para uma hora. Não é muito tempo, eu sei, mas os outros tarifários eram caros e eu tenho que poupar para as prendas de Natal.
Pelo menos, deve dar para lhe falar sobre a forma como a estranha ausência provocada pelo silêncio faz sentir a existência de outras pessoas espalhadas por aí. Não ouço, vejo, cheiro, toco ou saboreio as presenças delas, mas sinto-as nas suas vidas.
São muitas, deambulando por inúmeros caminhos e, curiosamente, passando umas pelas outras sem interagirem, nem perceberem que integram um todo.
A nossa natureza torna-nos seres estranhos porque sentimos aqueles que nos rodeiam através das coisas, ou seja, não os vemos, ouvimos, cheiramos, tocamos ou saboreamos no seu estado puro. Encaramo-los como algo comum, mais do mesmo, e apenas tomamos sentido da sua essência quando nos dedicamos a uma evolução conjunta.
Sabe, é que as pessoas não se reduzem aos acessórios que usam no quotidiano, meras adaptações de algo que na maioria dos casos foi feito a pensar em tudo menos nelas. Em suma, as pessoas não são o que se vê, mas aquilo que se sente.
Uma vez que estamos longe, vou propor-lhe um exercício.
Feche os olhos e pense numa pessoa. Não tem que ser alguém com uma característica específica. Uma pessoa qualquer.
Vá, rápido que a telepatia paga-se. Olhe, pronto, posso ser eu. A sério, esteja à vontade.
Não se esforce por recordar um momento em especial que tenhamos tido ou um bem material que tenhamos partilhado. Relaxe no divã e, simplesmente, pense em mim.
Não, não está a fazer uma figura ridícula. Ainda por cima está aí sozinho. Vá, pense em mim... só uns segundos... de olhos fechados... isso mesmo.
Já pensou? Óptimo.
Agora, diga-me, sentiu a minha roupa, a minha casa, os meus gestos? Não, pois não?
O que sentiu?
Pois... esse formigueiro mental sem nome sou eu na minha forma pura e quanto melhor nos conhecermos maior será a sensação. Porquê? Ora, porque à semelhança da água transparente que enche uma jarra, as essências daqueles com quem nos partilhamos preenchem a nossa existência sem que seja necessário vê-las.
Percebe?
Doutor? Diga? Estou a deixar de o ouv... Chiça, acabou o plafond telepático.
Uma coisa é certa, até voltarmos a encontrar-nos, fica o formigueiro que apenas os sentimentos fortalecem e a certeza de que andamos pelos quatro cantos do mundo (redondo), conscientes da existência um do outro.
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