sexta-feira, 19 de março de 2010

As coisas do costume...

Olá Doutor,

Antes de mais, bom ano!

Cortou o cabelo? Ah, eu sabia, notei mal entrei no consultório. Fica-lhe bem, sim senhor. A dona Deolinda finalmente assumiu "os brancos", mas manteve a permanente "da moda" (lá do bairro). Nunca percebi como ela consegue aguentar aquela instalação artística na cabeça... Arames? Faz-me lembrar claras em castelo, a si não?

Como pode ver, o meu continua a expandir-se desenfreadamente e assim continuará, pelo menos até ao dia em que me cansar do novo e imenso vocabulário quotidiano, como "pontas espigadas", "secador", "raízes enfraquecidas" ou "pontas soltas".

Aqui para nós, chega a tornar-se fútil tamanha preocupação por um pedacinho de corpo e dispenso dores extra na consciência, do género "Ups, usei o amaciador errado... Pronto, é desta que o cabelo vai perder brilho! Oh vida, e agora?? De que vale aplicar-me na luta por ter momentos genuínos e recheados de sorrisos se ninguém me dá as dicas necessárias para ter o cabelo ideal. Sinto-me tão desamparada...".

Peço desculpa por nunca mais ter dado notícias, a minha vida mudou drasticamente nos últimos tempos e não tenho conseguido passar por cá. Não, doutor, não consegui o lugar no concurso público para a tontinha da aldeia, acho que aquilo estava "feito" para um moço da zona que se baba de vez em quando e anda pelas ruas a dizer que foi deixado em criança no caniçal por seres de outro planeta.

Não entendo porque apostaram nele, acho que lhe falta originalidade... ainda se bradasse aos céus que tinha sido deixado no meio da A23 pela caravana de campanha do candidato à liderança do maior partido da oposição que não tem como objectivo principal derrotar a líder actual e sim ajudar no crescimento do país... ou abandonado num caminho paralelo à linha do comboio por um elemento do Governo que acredita verdadeiramente que a crise irá terminar em menos de cinco anos, aí sim!

Enfim, cada um com a sua loucura... A verdade é que os meus níveis de introspecção atingiram limites máximos e não tenho tido oportunidade de me deitar aqui, relaxar corpo e mente e deixar as palavras voarem sem grilhetas e outras tretas.
Hoje vim porque aproveitei a hora de almoço e, para ser sincera, já não aguentava mais o prurido gerado pela ressaca deste divã!

Sabe, doutor, ando indignada! A idade devia trazer-nos uma vontade extra de querermos mudar as coisas porque o tempo urge, mas tenho assistido a uma tendência assustadora das pessoas se irem acomodando aos bens conquistados, como se fossem essas coisas do costume que contribuíssem para que a vida se tornasse grande...


Podemos ser tão altos, gigantes de espírito como as árvores centenárias que tocam as nuvens com os ramos quando se espreguiçam pela manhã, mas o tempo vai roubando lentamente a vontade de crescer e substituindo-a pela consciência (inconsciente) de que o tudo tem um prazo. É quase como se pedissem reforma antecipada da vida e se resignassem a meros jogos de sueca sem trunfos, com um baralho sujo pelos anos, num qualquer jardim sem flores.

Quanto menos tempo temos, mais deveríamos querer conquistar.
O mundo pode ser seu e meu e de cada um e de todos. Basta querer! Até porque se a folhagem de uns tocar na folhagem de outros, que bela clareira faríamos, daquelas onde se passa uma tarde de Verão e que o sol atravessa onde lhe é harmoniosamente permitido.

Ah, como é fantástico estar aqui esticada, refugiada do mesmo mundo que gostaria de unir... Chego a sentir repulsa por mentes pequenas que são grandes em coisas que não me interessam e tanto detesto como amo o que me rodeia. Percebe agora, é por estas contradições do costume que é necessário vir às suas consultas!

Sabe, doutor, sinto saudades de chorar de alegria, de saborear lágrimas salgadas em momentos doces, de rir sem parar, de correr descalça pela terra, de me sentir plena. Neste momento, sou um copo meio cheio... Bem, convenhamos, um copo de bom vinho quer-se sempre meio... Copo cheio só na tasca!

No entanto, não é grave. Ainda acredito e continuo com o meu orgulho no auge, na esperança de que a vida mais simples pode conter as coisas do costume e muitas outras.

Enquanto acreditar que o segredo não está na quantidade do que se tem, mas sim na forma como encaramos o que temos e o partilhamos, continuarei a crescer. E sabe que mais Doutor? Durante esse processo lutarei contra o que for necessário para que um dia ao espreguiçar-me pela fresquinha, possa sentir nas pontas dos dedos o azul do céu e folhagens alheias!