quinta-feira, 5 de novembro de 2009

A tontinha lá da aldeia

Posso entrar Doutor?

Ah, estou a ver que fez algumas alterações no consultório. Bela escolha de cores, fazem lembrar um quadro do Paul Klee. Manteve o divã e instalou um sistema de música ambiente. Isto é o quê? Astor Piazzolla? Ui, gosto... e muito!

Se adormecer durante a consulta, acorde-me. Sabe, é que hoje voltei a dormir mal. Fechei os olhos, sim, mas o cérebro não desligou e acordei com a sensação de que passei a noite inteira a fazer cálculos dignos de um Einstein ou a tentar interpretar de forma coerente o programa do Governo e as reacções da oposição...

Bem, mas voltando aos meus sonhos... tenho-me deparado com um mundo compacto e intensamente populoso. Esta noite não foi excepção. Partilhei as horas com inúmeras caras conhecidas e desconhecidas, em locais tão díspares como uma casa no centro de um lago, um comboio suburbano, uma curva apertada que conheço desde a infância e as ruas de uma qualquer vila histórica, ladeadas por muralhas. Não me lembro particularmente do enredo, mas sei que a lista de adereços incluía uma barriga de grávida, um livro da Taschen, um carro branco que deixaram ir abaixo...

Muito bem, Doutor! Depois do Astor Piazzolla é fantástico ouvir a Bebel Gilberto...


Enfim, tenho tido sonhos surrealistas e ao acordar deparo-me com uma realidade fauvista! Além disso, não consigo deixar de fazer comparações entre o que fui, o que não fui, o que sou, o que não sou, o que o mundo é e o que poderia ser... Doutor, não existe alminha que resista a tamanha confusão! A minha tia Pallete que nem desconfie disto senão mete-se na "carreira" e tenho que a aturar...


Apesar de tudo, ainda não enlouqueci... acho eu...


Sabe, é que não é saudável ser-se louco no campo. As pessoas falam muito e, ao contrário da cidade, ficam especadas a comentar como aquela família não teve sorte, atribuindo à loucura causas pouco nobres.

Já lá vai a altura em que um louco era considerado um sábio incompreendido. Hoje em dia, um louco não é respeitado e nem todos os seres com uma existência alienada conseguem ganhar o estatuto de "tontinho da aldeia". O "tontinho da aldeia" é uma figura pública tão amada e incompreendida como o presidente da câmara. Em suma, é mais um funcionário da autarquia, uma espécie de animador sociocultural a tempo inteiro.


A luta pelo estatuto de "tontinho da aldeia" implica grande esforço e dedicação! Até aqui se sentem os efeitos da crise e eu ainda tenho um longo caminho a percorrer até ser "contratada". Sei que, inicialmente, iria deparar-me com alguns comentários impopulares, como - "Coitada daquela família... A Dona Cremilde contou à Menina Julieta, durante a missa, que a moça ficou assim por causa dos ares de Lisboa. Cá para mim, foram drogas que lhe deram por lá... As gentes da televisão são assim!".

Doutor, será que a minha família aguentaria este tipo de comentários? Talvez seja melhor continuar na dúvida se estou louca. Quanto mais não seja, lanço o boato de que estou com uma depressão.

O problema é que se considera irracional ganhar uma depressão devido à frustração profissional. Normalmente, ganham-se depressões devido a causas emocionais, ou seja, "porque o marido a trocou por outra", "porque é uma encalhada" ou então porque faz parte da família do tontinho da aldeia...

Hum, o papel de encalhada até era capaz de resultar. Já consigo imaginar o falatório nos bancos de jardim - "O meu Tony estava no café e ouviu o Zé do talho comentar com o padeiro que a moça se envolvia com mulheres lá na cidade. É muito estranho ter quase trinta anos e andar por aí desamparada! Ainda não casou, nem teve filhos nos tempos da adolescência... é estranho ou não é? Coitada daquela família! Nem um tontinho, nem um casamento infeliz..."
.

Pois... ainda são muitos os sítios onde apenas se aceita que alguém viva sozinho a partir do momento em que já se tenha tido, pelo menos, três filhos e um casamento infeliz. De outra forma, como pode uma pessoa ter uma vida independente sem ganhar uma depressão?

A cusquice continuaria acesa no salão da cabeleireira - "Só falta dizer que existem pessoas que estão sozinhas porque são teimosas ao ponto de ainda acreditarem que irão encontrar a pessoa ideal para partilharem a vida de forma inteligente, com um misto de maturidade e puerilidade... Bah, aguentar o mundo em dois ombros... Porque não distribuí-lo por quatro, mesmo que os outros dois não sejam os desejados? Essas relações nem existem nas novelas... Era só o que faltava!! Isso é coisa de loucos... ou então de "mulheres-homem"!!
".

Oh Doutor, a minha família também não merece este tipo de suspeitas, simplesmente porque sou heterossexual. Se não fosse, bem queria eu saber que falassem do meu lesbianismo, mas assim vou poupar a minha avó, que não resistiria a tamanho golpe na "moral" que é defendida em prol do "bem comum"... de alguns...

Sim, de alguns... Os verdadeiros valores não se impõem, nem se publicitam. Encaixam e limam a nossa natureza animal de forma natural. Sendo a felicidade um fim em si mesmo, não me interessam quais os meios utilizados pelos outros para a atingirem, desde que prevaleça o respeito mútuo... e o respeito passa por ficarmos felizes com a felicidade dos que nos rodeiam.

Será assim tão difícil perceber isto?

Será que, ao pensar assim, conseguirei o tão almejado estatuto?


Pensando melhor, talvez tenha fortes hipóteses de me tornar na tontinha da aldeia, ganhando algum respeito nas conversas de café e de sacristia e fazendo concorrência aos temas apresentados nos programas matinais da tv...

"Eu não sou de lançar boatos, mas contaram-me que a moça acredita na felicidade e que, às vezes, a vêem a escrever sobre esperança e a força que os seres humanos têm dentro de si para mudarem o mundo."

"Ai, não me diga?! Até que é boa rapariga, mas aquilo só podem ser efeitos da poluição de Lisboa ou da falta de um homem que lhe meta a mão em cima de vez em quando... Coitada!"

Acredito que a família conseguirá aguentar tamanha exposição na praça pública. Sabe porquê, Doutor? Habituei-os aos meus lapsos de sanidade mental desde tenra idade e sempre lhes disse que iria ser famosa...

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

(Ainda) não sei...

Olá Doutor,

Pois, tem razão em estar com essa cara... Tenho faltado às consultas... A Dona Deolinda já nem estranhava quando eu ligava a desmarcar, apenas perguntava se eu estava bem...

Se eu estava bem... que raio de pergunta. O que é "estar bem"? Bastará comer sobremesa ao almoço? Ou o "estar bem" pressupõe algo muito mais profundo? Sei lá... estar viva, sorrir regularmente, ser mimada pelo mundo, seguir em frente?

Sinceramente, não sei responder à questão. À Dona Deolinda apenas respondia que sim e é incrível como uma resposta tão simples consegue enganar tanta gente, incluindo nós mesmos.

Não sei se estou bem, sinto-me num labirinto de cor verde esperança, salpicado por outras cores cujos nomes desconheço. Apesar de saber que o labirinto tem saída, hoje prefiro sentar-me a olhar para além das paredes, directamente para cima, directamente para o céu. Ah, como seria bom se tivesse asas e usasse um dos últimos fôlegos para levantar voo e sair daqui, rumo ao azul, sobrevoando os muros do labirinto e rindo com desdém de todos os momentos que ali passei.

Por vezes, sinto que me chamam do lado de lá dos muros. Serão vozes que estão para além do labirinto ou outros que, tal como eu, deambulam por aí? Doutor, não sei... cruzei-me com algumas pessoas, mas trocam-se poucas palavras quando o tema de conversa é o mesmo. Aqui não se pergunta se o outro está bem...

A saída está perto, mas vou dormir mais um pouco neste recanto. Posso? É-me permitido desistir durante um dia, sem máscaras nem outras tretas que fui deixando pelo caminho para que a caminhada se tornasse mais leve? Preciso de me sentir humana, de me inspirar nos sonhos, dormir sobre os milhentos assuntos do mundo e olhar-me nos olhos com um brilho renovado para voltar às batalhas. Sim, Doutor, não existe melhor arma do que acreditarmos em nós mesmos e, tal como todas as armas, também essa necessita de manutenção...

Sem indicações nem mapa, existe apenas a certeza de que brevemente conquistarei a minha liberdade e o meu bem estar.

Quando? Doutor, não sei... Até lá, está autorizado a dar-me um par de estalos de cada vez que me apeteça desistir. Pode ser? Esteja descansado, não farei queixa de si. Sabe porquê? Porque é tão culpado aquele que desiste, como os outros que não o ajudam a abrir os olhos e a enfrentar a realidade (mesmo que essa realidade seja o próprio reflexo).

Doutor... que olhar é ess... Au!! O estalo doeu! Pronto, ok, eu não desisto... por hoje... Dout... Au!!

terça-feira, 20 de outubro de 2009

A Tia Pallete II

Olá Doutor,

na última consulta saí daqui com a sensação de que faltava dizer tanta coisa sobre a tia Pallete. Sabe, acho que todos possuímos um lado "Palletiano", caracterizado pela capacidade de perceber que numa viagem de (v)ida é possível transformar pontos de chegada em novos pontos de partida.

Para ser sincera, cheguei a considerar a tia Pallete como uma aposta válida nas últimas eleições para a Junta de Freguesia lá da terra, mas ela recusou a ideia, dizendo que ainda não se sente preparada para se tornar numa figura pública. Eu, claro, idealizei toda a campanha eleitoral. Adoro os bastidores da política pois só dão pela nossa existência quando as coisas correm mal e, até lá, podemos andar na rua à vontade!

A campanha da tia Pallete teria como base o facto de estarmos a falar de alguém que oscila entre os estilos de vida sedentário e nómada. Por isso mesmo, considero que à sua candidatura se adequaria perfeitamente o lema político "Ficar por opção". Não seria frutuoso? Até soa a modelo de vida, percebe? Um exemplo a seguir por outras alminhas desamparadas nos meandros do Devir (que a filosofia tão bem sabe explicar).


Durante o período em que somos bombardeados com publicidade política nos outdoors e na caixa do correio, recomendaria para os encontros privados da tia Pallete com o mundo a música Les Jours Tristes do Yann Tiersen, com a voz do Neil Hannon. Em relação à banda sonora da campanha eleitoral, a escolha torna-se mais complicada.

Sabe, é que me encontro numa fase em que todas as músicas se enquadram perfeitamente numa ou noutra memória. Dou por mim a interiorizar cada frase... não consigo ouvir por ouvir... o corpo pede que escute com atenção.
Oh Doutor, chega a tornar-se irritante!

Além disso, existem
músicas magníficas que não merecem ser desperdiçadas no contexto eleitoral. Falo daquelas que gostaríamos que nos cantassem baixinho, ao ouvido, acompanhadas pela sensação magnífica do sopro quente no pescoço a ponto do resto do corpo se arrepiar... ou então que dispensam sussurros e pedem a cumplicidade do silêncio partilhado... como Hallelujah do Jeff Buckley, My Oblivion dos Tindersticks ou o Fake Empire dos The National, entre muitas outras...

Ai ai, Doutor... Ligou o ar condicionado porquê? Eu sei que as temperaturas desceram, mas... Hum? Diga? Aahh, não ligou... bem... pois... isso deve estar estar avariado, por momentos senti a temperatura a subir...

Ora, deixemos os calores de lado e passemos à frieza da tia Pallete, tão necessária para a sua campanha eleitoral e afins...


Uma coisa é certa, a tia Pallete entraria na corrida eleitoral como independente. Aquela mulher tem a mania das independências em relação a qualquer tipo de hierarquia, seja de que ordem for. Chegou mesmo ao ponto de desprezar e criticar a hierarquia dos sinais de trânsito quando, em pleno passeio de carro pela vila, dei por ela a berrar janela fora "Quer dizer, os semáforos trabalham noite e dia no mesmo local, depois chega aqui o senhor polícia e acha que manda nisto tudo?!!"... Doutor, não comento... Já ninguém me tirava da cabeça a imagem de carros patrulha com as sirenes ligadas a perseguirem-nos ao longo de quilómetros e quilómetros de asfalto e terra batida. É que os polícias da vila têm o ego tão inchado pelo orgulho na profissão como as respectivas barrigas pela cerveja (provavelmente, as únicas "louras" das suas vidas numa terra de mulheres morenas). Enfim, sobrevivemos!

Se a tia Pallete fosse eleita, já a estou a imaginar a beber o seu café matinal na "Tasca do CC" ("CC" é uma forma "in" que o Chico Castanha encontrou para atrair juventude ao seu estabelecimento comercial, reconhecido a nível distrital pelas bifanas no pão). Continuando... lá estaria a tia Pallete a beber o seu café, enquanto projectava a decoração da Junta para o seu encontro diário com o mundo... autárquico. Claro que não podemos esquecer as velinhas aromáticas e as pétalas de flores, espalhadas pelos 15m2 do gabinete, entre um computador de 1990 e uma impressora de 2000 (o mais recente avanço tecnológico daquela rua). Com ela as coisas iriam mudar!

Ora nem mais, acredito que a tia Pallete faria toda a diferença por conseguir ver "the big picture" numa "small town" e não se perder com pormenores aos quais se atribui demasiada importância, mas também por criticar quem lhe apetece e respeitar quem merece.

Lembro-me dela me dizer que um dia gostaria de ajudar algumas das pessoas com quem partilhou as suas experiências de colarinho azul por se tratarem de seres genuínos e não se deixarem abalar pelas fases intermédias da vida, continuando a ter esperança e a lutar. A tia Pallete é assim mesmo, vive cada um dos seus dias numa bolha multicolor, decorada consoante a sua maneira de sentir a vida e não deixa de acreditar em milagres terrenos pois sabe que cada ser humano tem dentro de si a força necessária para não fechar os olhos perante os desafios.

"Oh rapariga, nunca te esqueças disto", dizia-me ela no dia em que nos despedimos "Não precisas de ser crente para acreditar em milagres. Não será a fé a salvar-te, mas sim a capacidade de conciliares os sonhos e a realidade. Pega no melhor que cada um deles tem e constrói o teu castelo de areia. Se o mar o destruir, paciência, constrói outro e não te percas a tentar perceber cada partícula granulosa. Quando acreditares verdadeiramente que mereces um castelo e lutares por isso, o milagre acontecerá."

Resumindo e concluindo, eu teria votado nela! Você não?

Talvez nas próximas eleições...

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

A Tia Pallete

Boa tarde Doutor,

Ai, que saudades de me meter a caminho do consultório com vontade de falar consigo! Nos últimos tempos, ainda saí de casa uma ou duas vezes decidida a visitá-lo, mas optava sempre por outras paragens a meio do caminho. Não sei bem o que se passou comigo e, olhe, cheguei a ter perto de 40 graus de Introspecção. Por momentos, temi que se tratasse de Introspecção A...


Um dia, quando vinha a caminho, dei por mim numa esplanada a ler o jornal e decidi que estava na altura de ter um tratamento de choque. Foi então que liguei à minha tia Pallete e pedi se daria para passar uns dias lá em casa. Sim, a tia Pallete. É um nome estrangeiro... saído do Portugal profundo.

A tia Pallete é uma mulher com muita "xixa", embalada com roupas brancas e uma experiência de vida extraordinária como colarinho azul. Sempre ouvi falar dela como sendo uma pessoa assertiva, sem muito tempo (nem vontade) para devaneios pseudo-adolescentes. Ora pois, alguém assim tão frio era mesmo do que eu precisava para me ajudar a encontrar o lado morno do meu ser, uma espécie de anti-inflamatório para a introspecção, que começava a alastrar-se dentro de mim.

Quando cheguei, recebeu-me de braços abertos, olhou para as minhas mãos e pestanejou enquanto dizia alto (uma característica dela) "Ai filha, que mãos de escritório são essas?? É assim que esperas evoluir e ser feliz? São as mãos que agarram a vida. Cá para mim, tens tentado agarrá-la apenas com palavras e assim não resulta! Ou então, nunca sentiste no âmago a ânsia de agarrares alguma coisa a sério, o que torna a tua existência um tanto ou quanto superficial! Deixa lá, quando saíres daqui, serás outra. Garanto-te!".

Oh Doutor, ainda tinha a mochila às costas e fiquei ligeiramente apreensiva, já para não falar na raiva que senti ao ouvir aquela mulher a chamar-me "superficial". Será que ela iria meter-me a trabalhar no campo, agarrada à enxada, para ganhar bolhas, arranhões e calos? Eu tinha decidido ir até nenhures para me limpar mentalmente e bastaram alguns minutos para que a questão deixasse de ser o retiro espiritual e se centrasse naquela senhora. Sim, naquela personagem que trocou a linha de Cascais por uma linha de produção de momentos únicos que muitos considerariam rudes e outros aplaudiriam de pé.

Decidi arriscar e fiquei por lá quinze dias, num quartinho muito simples. Quartinho esse - obrigada tia! - sem imagens de santos, folhos cor-de-rosa ou bibelots de porcelana brilhante com retoques dourados. A tia Pallete é uma minimalista à sua maneira e, tal como eu, não é propriamente fã de ter trezentas molduras espalhadas por toda a casa.

As memórias, ao contrário das fotos, não são estáticas. Numa vida tão dinâmica em pleno século XXI (mesmo que para muitas pessoas, vida dinâmica seja sinónimo de se mexerem muito em rotinas estupidamente pequenas) as fotos podem limitar as histórias e experiências existenciais. Concordo que, muitas vezes, tenhamos a tendência para eternizar sorrisos e, de facto, na maioria das fotos caseiras existem muitos sorrisos... demasiados... No entanto, a grandeza da existência comporta todo o tipo de lágrimas, sejam elas de alegria ou de tristeza.


Ao descobrir que a tia Pallete também preferia argumentar o presente e o futuro com memórias, sem cair no erro de se tornar dependente de provas adulteradas - os sorrisos fotogénicos - percebi que os dias seguintes seriam bastante curiosos. Sabe, Doutor, tivemos conversas fantásticas, que começavam a meio da tarde e terminavam de madrugada.

Na primeira manhã em casa da tia Pallete, acordei com um sol estupendo a bater nas janelas. Ela já estava levantada e andava pela casa a espalhar pétalas de rosa e velas. "Oh pá..." pensei "Ela deve ter um encontro hoje e aqui estou eu, a servir de empata". Perguntei-lhe se iria ter algum encontro e ela simplesmente respondeu que sim, que todos os dias tinha um encontro consigo mesma e que gostava de preparar a casa conforme lhe apetecia. "Achas mesmo que tudo o que é bom e belo tem que ser obrigatoriamente partilhado? Podes vibrar com tanta coisa só porque sim, porque te apetece! Todos os dias tenho um encontro a dois, eu e o mundo! Pega aí nesse frasquinho de ambientador e vai borrifando todas as divisões, hoje o encontro é a três porque estás cá".

Os dias foram passando e uma certa noite decidi voltar ao assunto da primeira manhã, perguntando-lhe se a sua dedicação ao trabalho e aos encontros com o mundo não seriam uma forma inconsciente de roubar tempo a outras partilhas da vida. A tia Pallete, que já tinha bebido uns copos enquanto comia bifanas em promoção, respondeu-me "Oh filha, lá por estares de volta ao campo, não quer dizer que optes por uma forma bucólica de veres a vida!! Já não vivemos no século XVII! Preferes que te construam um Taj Mahal por teres morrido no parto do 14º filho ou alguém que se sinta feliz por ter passado uma tarde contigo a construir simples castelos de areia?".

A pergunta era estupenda e preparava-me para responder quando ela continuou o seu raciocínio... "Sabes, tive momentos deliciosos a construir diversos castelos de areia com diversas pessoas. Cada ser com quem partilhas a tarde torna o castelo único porque foi feito a quatro mãos. No entanto, isso não implica que não o consigas construir sozinha. Apenas constróis o castelo a quatro mãos se te apetecer e, sim, existe sempre o risco de encontrares mãos habilidosas e outras mais desajeitadas, mãos que te ajudam numa tarde e outras que vão ajudando a vida inteira. Tudo tem o seu valor!"

"Sim, tia, mas por vezes questiono-me se..."

Ela interrompeu-me de forma brusca, entornando o copo de vinho tinto na toalha branca "É esse o teu problema, rapariga, questionas em demasia! Sempre me disseram que tinhas tanto de filósofa como de louca... Sim, és louca por filosofar tanto! Não questiones tudo e todos, perdes demasiado tempo nisso! Vive e mais nada!"

"Oh, tia, mas eu vivo! Acha que não vivo? Recuso-me a..."

Ela voltou a interromper-me "Aprende de uma vez por todas, não me interessa saber como esta toalha ficou manchada, a toalha está manchada e pronto. A mim, interessa-me recordar que a mancha na toalha é um pormenor insignificante de algo muito maior, esta conversa contigo. Não deixes de te questionar, mas também não caias no erro de tentar compreender tudo. Oh rapariga, vive e não desperdices tempo com devaneios! O tempo não pára, é como um comboio em andamento. A vida é assim mesmo, tens que seguir viagem no tempo e não perderes parte dessa viagem a tentares travá-lo por ninharias. Mais cedo ou mais tarde, a viagem chega ao fim..."

Sabe uma coisa, Doutor, tantos dias passados sobre aquele jantar e as palavras da tia Pallete ainda ecoam na minha cabeça... Sim, cada um de nós possui um bilhete único para usufruir de algum tempo e, tal como acontece em qualquer viagem, passamos em alta velocidade pelas paisagens e pelas pessoas. É certo que não conseguiremos saber tudo sobre o mundo numa única existência, daí ser tão importante valorizarmos o que realmente interessa e o que ajudará a tornar a viagem numa experiência aprazível até chegarmos ao destino.

sábado, 3 de outubro de 2009

We will resist

Olá dona Deolinda,

Como tem passado? Ainda bem que a vida vai andando...

Pois, já sabe como eu sou. Para mim, a vida não tem que ir andando, tem que andar, correr, pular...

E olhe, por falar em correr, só passei mesmo para entregar esta música ao Doutor. Não se importa? Obrigadinha! Diga-lhe que, presentemente, ando a conquistar Tempo para fazer milhentas coisas com a vida no futuro.

Até lá, vou-me inspirando em sons como este e na certeza de que a tudo se resiste quando não esquecemos a razão pela qual se iniciou a caminhada, ou seja, aquilo que nos espera no fim do caminho. "We were made for much more, made for anything we want..."

Até breve!

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Um sonho lamecha...

Olá Doutor,

Está tudo bem consigo? Tem tido muitas consultas? O divã está sempre impecável. É a dona Deolinda que o limpa? A pessoa entra e apetece logo esticar-se. Deve ser da cor.

Olhe, por falar em cor, lembrei-me de um sonho que tive há pouco tempo. É um bocadinho piegas e nem parece nada meu, mas acordei tão bem disposta nessa manhã... Sabe - isto fica entre nós - nesse dia até acreditei que o lado piegas da vida pode ter piada.

Quer que lhe conte o sonho? Ok, então aqui vai... Espero não saltar as partes melhores. É que ainda não me consegui lembrar se hoje tomei os comprimidos para a memória!

Ora bem, o sonho começava com o bobo da corte, que vestia de amarelo e vermelho (bela conjugação). Todo ele era energia. Todo ele era vida. Todo ele era gargalhadas. Todavia, o bobo era uma pessoa triste por dentro. Fazia os outros rir quando era ele quem mais de um bobo precisava.

A rainha parecia nem perceber o quão cinzento o bobo se sentia. Ela mantinha a sua pose e não demonstrava qualquer empatia, logo, não lhe devia interessar se o bobo era feliz. A presença dele fazia-a sentir bem e isso parecia ser o suficiente.

Até que, um dia, o bobo não apareceu...

A rainha estranhou o sucedido e, indo contra os seus conselheiros, mandou procurar o bobo por toda a parte. O bobo foi procurado em cada divisão de casa de cada aldeia... em vão. Ninguém tinha posto os olhos em tal personagem, o que era estranho, uma vez que amarelo e vermelho se vêem bem à distância e um bobo não passa despercebido!

O bobo tinha partido e a rainha sabia-o, mas recusava-se a acreditar que nem uma piada lhe tinha deixado... algumas palavra que a fizessem sorrir ou corar. Irritava-a, sobretudo, custar tanto que bobo tivesse levado com ele as cores vivas, deixando o palácio mais cinzento. Por onde andaria?

Por volta da mesma altura, surgiu um estranho no reino. Um homem simples, calado, que passava horas e horas a olhar para o palácio. Aquele homem intrigava toda a gente, menos a rainha, que passava essas mesmas horas a pensar no bobo. Como a vida se tinha tornado estranha sem ele... Aquela presença colorida era única no seu salão. Sobressaía em cada frase, cantava, tocava instrumentos musicais, cortava as teias do socialmente correcto e olhava para ela sem deixar que o silêncio fixasse no tempo a troca de olhares. O bobo fazia falta.

O visitante do reino, pelo contrário, raramente tirava os olhos do chão e falava muito pouco. Os habitantes temiam alguém tão introspectivo, cujos ombros descaídos suportavam um peso invisível. Que peso seria aquele? Os boatos eram muitos e as certezas poucas.

Os anos foram passando e a rainha continuou a sua vida, com inúmeras responsabilidades. O palácio, contudo, tinha mudado. Era agora um espaço vazio de conversas e sorrisos. Os grandes jantares no salão continuavam, mas sem bobo. A rainha passara a repudiar as cores amarelo e vermelho e condenava as gargalhadas. Uma gargalhada era, para ela, sinónimo de solidão, de saudades, de raiva, de coisas incompreensíveis.

Por sua vez, o desconhecido tinha feito alguns conhecimentos (apesar de ninguém o conhecer verdadeiramente) e passara a frequentar os grandes banquetes reais. No entanto, as horas no salão eram para ele horas de silêncio, a olhar para a rainha. Ela sentia aqueles olhos na sua pele, nos talheres com que comia, no copo em que bebia, em cada fibra do seu vestido. Deveria chamá-lo à atenção para tamanha falta de cortesia? Só o bobo podia olhar para a rainha daquela maneira.Todos os outros, mesmo os seus pretendentes (muita quantidade e pouca qualidade), não se arriscavam fazê-lo.

Na verdade, a rainha sentia-se sozinha, mesmo estando constantemente rodeada pelos seus inúmeros servos, aias, conselheiros e afins. Tinha por hábito subir até ao cimo da torre mais alta do palácio e contemplar o que havia conquistado, tentando convencer-se de que tudo aquilo era imenso e seu. Para quê querer mais? Ainda por cima, para quê sentir que precisava de algo cujos nome e forma desconhecia? Nem ela percebia muito bem o que faltava na sua vida grandiosa, repleta de riquezas...

Certa noite, a rainha decidiu encarar quem a fitava. Inicialmente hesitou, mas depressa reparou que o estranho homem continuava a olhar na sua direcção e usava um lenço com as cores que ela mesma (sim, a rainha!) tinha repudiado. Que afronta! Como podia aquele desconhecido julgar-se no direito de dominar o tempo ao ponto de o abrandar quando os olhos de ambos se encontraram? E porque usava ele aquelas cores?

O bobo tinha partido e aquele homem, que de bobo nada tinha, fazia-a corar. Corar? Ainda por cima, alguém que não possuía o dom de a fazer sorrir porque não falava com ela, dela, da corte, do reino, dos pequenos tudos e dos grandes nadas. Aquele homem não a fazia pensar no que a rodeava. Aquele homem nunca lhe dirigira a palavra... e com um simples olhar... tinha dito muito...

A rainha levantou-se, justificou a sua saída com uma leve indisposição (de facto, tinha uma estranha dor no estômago) e regressou aos seus aposentos. Naquela noite dormiu... naquela manhã dormiu... naquele dia dormiu... naquele mês dormiu... naquele ano dormiu... Os médicos vieram de toda a parte e nada. Até a bruxa da aldeia foi chamada, sem resultados. Ninguém conseguia acordar a rainha, que se mantinha adormecida com um estranho rubor nas faces e um leve sorriso nos lábios que ninguém compreendia.

Fizeram-se reuniões atrás de reuniões. Os conselheiros da rainha não tinham solução para o problema em mãos.

O palácio tinha adormecido com ela. Reinava um silêncio perturbador e até nas casas da aldeia se sentia, passando a fazer parte das colheitas, das refeições, das conversas. Ninguém ousava fazer barulho, como se receassem que a rainha acordasse. Na verdade, todos desejavam que tal acontecesse, mas uma rainha era soberana e se ela queria dormir, tinha que ser respeitada.

O estranho que havia chegado anos antes continuava a sentar-se no pátio que dava para o palácio e olhava para a janela do quarto da rainha com um brilho nos olhos que os restantes habitantes consideravam ofensivo. Havia quem defendesse que era um velho mago que habitava as montanhas desde que havia memória e que tinha lançado um feitiço, mas ele de mago nada tinha.

O que faria ele ali? No que pensava? Percebia-se que estava num dilema, mas ninguém se arriscava a perguntar-lhe o porquê do brilho nos olhos se intensificar de dia para dia. Aquele era o brilho da certeza... O suposto mago ali ficou durante tempos infindáveis, até que, para espanto de todos, pediu uma audiência aos conselheiros reais...

Do que falaram nunca se soube, mas numa manhã em que o vento acariciava as folhas das árvores, o estranho homem, a última pessoa a olhar a rainha nos olhos, entrou no quarto onde esta dormia. Fechou a porta e, muito lentamente, começou a tirar as peças de roupa, uma a uma, até ficar despido. Então, sem fazer barulho, pegou no saco que trazia consigo e vestiu um traje colorido. O amarelo e o vermelho tinham a mesma vida de antigamente, apesar de terem estado guardados num velho armário.

Deitou-se na cama ao lado da rainha, beijou-lhe as faces rosadas e segredou-lhe qualquer coisa ao ouvido. A rainha mexeu as pálpebras ao ouvir aquelas palavras e, de repente, acordou.

O bobo sorriu, a piada tinha resultado. A mesma piada que o tinha feito partir sem se despedir, fazia agora com que a rainha regressasse do seu mundo interior. Um mundo que ele tinha conhecido de cada vez que a olhara nos olhos.

A rainha encarou o bobo, sorriu e com uma voz muito rouca, típica de quem acorda de um sono pesado, pediu-lhe "Conta-me a piada outra vez". O bobo inclinou-se sobre a rainha, tocou ao de leve nos lábios dela com os seus e voltou a segredar-lhe algo.

"Porque não me contaste antes?", perguntou ela. Ele respondeu "Porque naquela altura apenas rias do bobo amarelo e vermelho, sem perceberes que eu também queria estar ao teu lado de cada vez que choravas no cimo da torre mais alta. Quero partilhar contigo momentos de todas as cores". Sorriram e adormeceram, aninhados um no outro.

Doutor, eu bem disse que o sonho era lamecha. Deu-me para isto!

De qualquer das maneiras, a piada que os uniu era simples e inteligente. São poucos aqueles que a compreendem e raros os que a partilham, cúmplices, deitados numa cama...

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Pessoa

Boa noite Doutor,

Eu sei que estou atrasada, mas cruzei-me com uma pessoa muito peculiar à porta da Tabacaria. Um senhor que estava a pedir moedas em troca de poesia (e que poesia!), recheada de uma pureza e simplicidade que raramente se encontram. Mais tarde compreendi que o dinheiro é para o absinto e para o ópio...

Enfim... vinha eu a caminho da consulta, entretida com alguns ecos da vida no interior da minha cabeça, quando ouvi uma voz a dizer "Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.". Os versos mexeram tanto comigo que voltei atrás para saber quem andava a dizer tamanhas heresias para a sociedade actual.

A beleza dos sonhos é única e admitir que se tem todos os sonhos do mundo dentro de si pode gerar incompreensão, sobretudo daqueles para quem os sonhos são coisas de crianças e batem no peito com orgulho enquanto bradam aos céus a sua mediocridade "Sonhar, mas brincamos ou quê?! Isso faz-se na sesta da escolinha. A vida de adulto não tem sonhos, tem rotinas, sem direito a brilho nos olhos ou a sorrisos! Eu que te apanhe a sonhar outra vez e levas uma bofetada daquelas. Tens dez anos, pá, já és crescidnho!".


Afinal, aquele que se assumia como sonhador num mundo de adormecidos estava sentado numa simples cadeira de madeira, no passeio de uma rua cinzenta. Parei e ganhei coragem para lhe fazer um atropelo de perguntas "E quantos são os sonhos do mundo? Já os contou? Como pode um único ser aguentar tantos sonhos juntos sem ensandecer?"

Ele arregalou os olhos, endireitou os óculos arredondados, apagou o cigarro e ficou especado... a ler-me a alma. Doutor, aquele minuto custou tanto a passar. Até me passou pela cabeça "Pois, quem te manda meteres-te com indigentes. Agora vais ser assaltada!".

Pouco depois, o senhor lá se apresentou como sendo "o Fernando, nos dias em que não é os outros" e, sem qualquer pudor, respondeu "
Por isso eu tomo ópio. É um remédio. Sou um convalescente do Momento. Moro no rés-do-chão do pensamento. E ver passar a Vida faz-me tédio.". A revelação foi de tal forma surpreendente que fiquei sem palavras...

Tudo bem que todo o poeta (enquanto criativo) necessita da sua fonte de inspiração, mas aquele homem precisava de ajuda. A medo, comentei "O tédio tem efeitos nefastos na vida, mas não é o tédio uma pequena gota do imenso oceano que nos torna seres humanos? Vai deixar que essa pequena gota ofusque a beleza de algo tão grande? Quantas gotas de coisas belas irá desperdiçar, centrando-se apenas nesta? Diga-me, Fernando, você consome ópio sempre que se sente entediado?"

Voltou a ficar especado e, do nada, sussurrou na minha direcção "
Outras vezes oiço passar o vento, E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido."

Achei que estava a conquistar a confiança dele aos poucos e aproveitei para lançar uma das minhas dúvidas existenciais "Sentir o vento pode tornar um momento perfeito, mas serão suficientes estas pequenas delícias do quotidiano para que a vida seja plena?".

Cravou-me um cigarro, acendeu-o e olhou em volta, enquanto dizia "A espantosa realidade das cousas. É a minha descoberta de todos os dias. Cada cousa é o que é, E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra, E quanto isso me basta.". Deu mais uma baforada e concluiu "Basta existir para se ser completo."

Nem estranhei o facto dele falar de forma estranha e, ao ouvir a última frase, entusiasmei-me "Olhe, eu concordo que cada dia deva ser uma descoberta e, sim, tudo vale por si mesmo. No entanto, ser completo por vezes é mais complexo do que devia. Não me diga que basta existir. Como basta existir? A existência é tão longa e feita de tantas coisas! Acha que se consegue meter tudo num saco e seguir viagem? Com o passar da vida, o saco torna-se mais pesado. Não é assim tão simples, pois não? Por vezes, nem eu não consigo sentir a ligeireza da existência...".

Ele parou de fumar, pegou na minha mão - ai, Doutor, assustei-me com o gesto - e com a maior das calmas entregou-me um papelinho muito velho onde se lia "O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem."

Li o papel várias vezes, questionando-me se este homem que troca poemas por moedas conseguiria, de facto, ler almas. O valor das coisas, o valor da vida... tudo isso revelado num pequeno papel, cheio de dobras e mais dobras...

"Posso ficar com o papel?", perguntei.

Ele anuiu, largou-me a mão, levantou-se e seguiu caminho...

Doutor, como foi possível ter percorrido aquela rua durante dias, a caminho das minhas próprias divagações, sem ter parado uma única vez para escutar esta Pessoa? Nunca tinha reparado sequer na cadeira...

Será que amanhã ele volta a existir naquele passeio?

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Eremitagens

Doutor... posso?

Aviso-o já de que hoje só me apetece dizer parvoíces e começo por lhe dar a notícia de que decidi tornar-me eremita. Sim, eremita... em Marte!

Contactei uma empresa imobiliária, a REMarte, e até agora só me souberam dizer que as condições do solo marciano não são as melhores, que aquilo tem pó por todo o lado e que a viagem demora que se farta, mas mesmo assim... Acho que um eremita que se preze procura um sitio isolado e a julgar pelas fotos da NASA, mais isolado do que aquilo não há. Além disso, eu gosto de vermelho!

Para ser sincera, estou indecisa entre Marte e as Berlengas...

Se escolhesse as Berlengas, sempre gastava menos na viagem, podia viver no farol e teria uma ou outra gaivota para falar de vez em quando. Além disso, eu vou para qualquer um destes destinos porque quero estar em paz comigo mesma. Imagine que aparece alguma malta de Marte sem eu estar à espera?

Tudo bem, eu tive aulas de Protocolo, mas apenas a nível mundial. Sem noções de Protocolo Universal arrisco-me a ofender os marcianos com alguma atitude que a maioria dos humanos considere aceitável... sei lá... como dizer "bom dia", comer com faca e garfo, ter uma vida pequenina, criticar sem apresentar soluções, distribuir a mesma riqueza que poderia salvar dez aldeias inteiras da fome por vinte e dois gajos que correm durante noventa minutos (com direito a intervalo!!)... e outras coisas do género.

Doutor, recuso-me a originar incidentes diplomáticos a nível intergaláctico. Seria complicad... O quê? Pode repetir a pergunta? É que não o percebi, falou tão baixo...

Oh, Doutor, quero lá saber se existem telemóveis ou internet em Marte. O objectivo da viagem é tornar-me eremita, percebe? Eremita! Não vou lá fazer turismo! Eremita é sinónimo de estar longe de tudo e perto de mim.

Sim, eu sei que terei de superar o risco de me centrar no meu umbigo a tempo inteiro, mas um dia ou outro não faz mal... Todos temos os nossos "dias umbigo", sempre que nos centramos em nós próprios e desvalorizamos o mundo porque desconfiamos dele. Pois, Doutor, são aqueles dias em que surge o eterno receio de que a entrega se transforme em desilusão e se opta pela eremitagem na esperança de limpar a mente.

É tão mais simples esquecer... mas... tratar-se-á de um acto de cobardia?

Hummm... eis um tema complicado... Uma gaivota nunca me faria tal pergunta, ou seja, para o bem da minha sanidade mental, vou optar pelas Berlengas!

Sim, Doutor, querer esquecer é um acto de cobardia, mas dessa cobardia poderá resultar um acto de coragem... esquecer o passado para conseguir recomeçar, mesmo que tal implique deixar algumas coisas para trás.

O ideal seria se não tivéssemos que deixar o que quer que fosse para trás, aprendendo com o que tivemos de bom e de mau. Como seria excelente se a entrega passasse por assumirmos a responsabilidade de tornar o mundo melhor, começando por uma evolução pessoal e uma partilha sem medos.

Que raiva, Doutor! Hoje é um daqueles dias em que me irrita profundamente viver num planeta redondo cheio de mentes quadradas. Andamos aqui a fazer o quê?!

Limitamo-nos a sobreviver, relegando os sonhos para as horas que passamos na cama. Por onde anda a vontade de ser livre? De viver plenamente? De sentir o presente? De acreditar? Será que tudo isso voou para Marte?

Bem que podiam ter voado para lá outras coisas como a apatia, o comodismo, a burocracia, os receios infundados, as dúvidas, a ignorância... Enfim, todas essas grilhetas que nos prendem ao lado mais cinzento do mundo e nos limitam os movimentos.

Somos todos gigantes, presos em jaulas para anões!

Tentamos moldar-nos ao espaço existente durante a vida inteira e raramente percebemos que a chave esteve sempre no cadeado...

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Sublime

Olá Doutor,

Nem era para vir cá hoje, mas tinha que partilhar isto consigo!

Lembra-se da minha noção de momentos perfeitos? Sim, eu sei que leu sobre o assunto no meu processo pois escrevi sobre ele durante muitos anos. No entanto, acho que nunca abordei o tema nas suas consultas.

Os momentos perfeitos são minutos plenos da nossa existência (a sós ou partilhados) em que os cinco sentidos se deslumbram com o presente no seu estado mais puro.

Por breves instantes, o nosso espaço interior é invadido de forma abrupta pela sensação de que estamos no centro do mundo e que o mundo resplandece. Vive-se o momento, contrariando a tendência de olharmos para o todo, ao mesmo tempo que (re)descobrimos cada pormenor admirável.

Gosto de pensar que cada momento perfeito é uma revelação que o mundo nos sussurra ao ouvido e hoje tive uma experiência sublime.

Imagine...

Um fim de tarde com o pôr-do-sol mais belo do mundo.

Uma brisa suave, tão quente como o laranja que só existe neste céu.

A minha canoa em pleno rio Tejo, que a certa altura se transformou num espelho.

Ai, Doutor, no meu momento perfeito, dei por mim entre as nuvens...

Sim, hoje eu consegui voar!

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Barbies

Boa tarde Doutor,

desculpe o abuso de ter entrado com o consultório vazio, mas vim cedo demais para a consulta e a Dona Deolinda disse que não havia problema.

Para ser sincera, entrei porque não conseguia ouvi-la durante muito mais tempo! Mal me apanhou na recepção e viu que o meu bronze começou a ficar às manchas - ai, doutor, isto foi provocado por pura inveja de quem não vai à praia! - recomeçou a conversa dos perigos do sol, de como uma prima dela teve que ir ao hospital e esperou três horas para ser atendida... já para não falar de quando decidiu partilhar os problemas da vizinha que se dá mal com o marido e da irmã que critica toda a gente da rua onde mora.

Olhe, preferi vir para aqui, aninhar-me no divã durante uns minutos a conversar comigo mesma. Bem... e... surgiu-me uma dúvida existencial! Sim, doutor, eu ainda não esgotei a lista de possíveis dúvidas existenciais que uma pessoa consegue aguentar. Ui, tenho quantidade suficiente para dar e vender.

Na verdade, tudo isto surgiu há uns dias, quando tomei consciência de que passei a ser a única rapariga dos dois lados da família que não está casada e sem rebentos (já tive uma planta, conta?). No momento em que deram a notícia, seguida pelas típicas palmas e expressões de alegria por se dar continuidade aos apelidos familiares nos anais da História Mundial, comecei a ponderar sobre o rumo que tenho dado à minha vida e se as minhas opções não se deveriam a uma vontade inconsciente de me afastar de compromissos sérios a nível pessoal. É que, mesmo no contexto da tão famigerada crise económica, mais facilmente se troca de emprego do que de rebentos. Doutor, os filhos são em full-time e, mal nascem, entram para os quadros da empresa-mãe!

No entanto, a grande questão surgiu poucos minutos depois, quando o devaneio sentimental passou e percebi que, ao contrário das minhas primas, nunca devo ter recebido uma "Barbie Mamã Antes dos 30", uma "Barbie Coraçõezinhos" ou uma "Barbie Doméstica"...

Eu lembro-me de ter tido uma Barbie verdadeira e não era nada como hoje em dia, do estilo "Barbie Corporatión Dermoestética"... Sim, Doutor, à excepção da Barbie, mais ninguém consegue chegar aos cinquenta anos com aquele corpinho?! Há ali muito trabalho de bisturi...

Qual seria a minha versão?

Durante alguns anos, pensei que tivesse sido a "Barbie Workaholic", que incluía canetas, papéis, um telefone fixo (na altura não existiam telemóveis!) e uma agenda profissional tão recheada que nem tempo tinha para pensar no resto da vida. Contudo, nos últimos meses, desconfiei que fosse a "Barbie Pseudo-Desempregada", cujos acessórios não faziam muito sentido. Ok, a senha para o Centro de Emprego estava enquadrada no tema, mas para quê uma bandeja, uma torradeira e um tirador de cerveja? Acho que esta versão foi um fracasso porque não trazia barril, ou seja, estava incompleta.

Na verdade, o que eu queria mesmo era pedalar no meu triciclo, com fitinhas coloridas penduradas e um mega volante, que me levava até aos confins do mundo conhecido (bem sabia eu, na altura, que existia vida para além da quinta da vizinha e do parque de campismo!). De certeza que me lembraria se tivesse tido a versão "Barbie Triciclo"...

Doutor, é que irrita tanto não saber qual a versão que me moldou a existência! E já nem falo do Ken... Também não me lembro, acha isto normal? Só sei que não era o "Ken Puto aos 40"e, muito menos, o "Ken Tacanho"... Era uma versão especial... Como é que se chamava? Ah, já sei, doutor! Era um "Ken Companheiro de Aventuras da Vida", é isso! Nem sei onde é que ele anda... tenho que ir à procura!

A infância foi recheada de descobertas maravilhosas... as pastilhas Gorila, o sumo Caprisone, os fios de pinhões na Nazaré, andar a chapinhar na água com que o meu bisavô regava a quinta (o homem desesperava quando me via com os pés nos carreirinhos... que deixavam de existir), o gosto de criar uma colecção inteira de Primavera-Verão com base numa única toalha de praia, as bombocas (preferencialmente, de morango), os banhos nos tanques (meu e da vizinhança) cheios de "verdum" e girinos... Mas, a Barbie... qual era a Barbie?

Posso garantir-lhe que não era a "Barbie Nazarena", com oferta de sete saias e uma lâmina de barbear, nem me parece que fosse a "Barbie Irmãos Grimm" porque há dias em que defendo que passamos a infância a ler histórias de encantar e o resto da vida a desencantarmo-nos. Seria a "Barbie Nómada", com oferta de uma tenda e um camelo? Nah, sei que ainda pedi essa versão aos meus pais, mas era demasiado cara.

Seria qual? Humm... Olhe, Doutor... lembrei-me!! É isso! Naquele ano, a "Barbie Ser Social" estava no auge das vendas e decidiram criar uma (sub)versão, a "Barbie Ser Humano", que não teve tanta saída porque apenas tinha como acessório um simples frasquinho cheio de vontade para não desistir dos sonhos e acreditar no impossível.

Diga, Doutor? Qual era a diferença entre as duas versões? É que a "Barbie Ser Social" trazia um sem número de outras coisas, no meio das quais o frasquinho muitas vezes se perdia... A embalagem era enorme e incluía um relógio, uma casa, um carro, um emprego e sei lá que mais!

Todas as miúdas queriam ter aquela embalagem a curto prazo e recordo-me agora que a primeira reacção ao receber a "Barbie Ser Humano" foi de desespero. O que é que se fazia apenas com aquele frasquinho? Só aquilo não chegava! Na altura, devo ter pensado "Pronto, a minha existência está perdida... vou dar uma volta no triciclo para espairecer!".

Mal sabia eu que aquele pequeno frasco continha algo tão fundamental para uma vida verdadeiramente única e valiosa... Hmmm... será que o guardei?

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Viagens inteiras, vidas plenas

Olá Doutor,

Já estou de volta! A viagem foi fantástica, adorei... e olhe só para este bronze!

A dona Deolinda viu-me na recepção e começou logo a falar de escaldões, de como o sol está muito forte, de como é perigoso viajar por causa da gripe A, riscos para aqui, riscos para acolá... enfim, o costume, mas lá acabou por concordar que tenho um belo tom dourado no corpinho.

Já agora, gostou do postal? Tive a sorte de o encontrar num quiosque minúsculo, junto à doca. A frase tinha tudo a ver com o momento. É que viajar abre-nos os horizontes. Percebemos que existe tanta coisa para além daquilo que conhecíamos... tantas vidas para além da nossa... tantos universos paralelos... tantas possibilidades... Sabe, doutor, cada viagem alimenta-me a fome de dar voltas ao mundo até perder o fôlego.

Tenho consciência de que, por mais que queiramos, é impossível fugir de algumas rotinas. Oh sim, porque apenas os eremitas são totalmente livres. Quem não é eremita por opção, tem pela frente uma luta diária, que passa por equilibrar os momentos de vida socialmente imposta com pedaços de vida plena. Quando isso acontece... bem... mesmo que a viagem seja apenas de alguns metros em frente (os metros que nos afastam das pessoas)... ah, doutor, torna-se viciante!

Por falar em viciante... trouxe algumas doses puras do tal produto de Cuba. Às escondidas, óbvio. Nem o moço percebeu. De qualquer das maneiras, o que é que ele poderia fazer? Meter-se no barco e vir cá cobrar-me? Nah, não acredito... Andar à deriva não é sinónimo de eremitagem e ele lá tem os seus compromissos sociais. De certeza que não iria deixar os clientes à espera porque chega a pensar mais neles do que nele próprio.

Esta quantidade deve durar para os próximos meses, até porque não tomo o produto todos os dias. Uma grama dá para... sei lá... duas semanas? Mais coisa, menos coisa. Além disso, existem alturas em que não quero ceder ao vício da "Eudaimonia" e do "Summum Bonum". Apesar da sensação ser magnífica, tenho dias em que tento manter a sanidade mental (sem qualquer conotação comodista), evitando tudo aquilo que possa deturpar-me os sentidos e deixando a vida fluir.

Sim, fluir simplesmente... Não quero sentir-me uma barragem, apenas mais uma, num rio específico. Quero fazer parte do rio e poder mergulhar nele sempre que me apeteça... vestida, de biquíni ou nua. Só assim a vida se vive por inteiro!

Para metades, bastam-me os preços nos saldos.

Para terços, já existem quantos bastem em Fátima.

Para quartos, só o meu, aqueles que valem a pena partilhar e os de hotel quando viajo.

Por falar em viajar... está na hora de fazer as malas e partir!

Tenho o mundo e as suas inúmeras paragens à espera, onde poderei inspirar certezas e expirar dúvidas, banhar-me de vida, ficar-lhe com os cheiros dos momentos, sentir cada segundo com a ponta dos dedos e escalar montanhas para ver (não limitar-me a olhar) a magnificência da linha do horizonte... tão ténue, tão simples, tão poderosa.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Postais de Cuba

Caro Doutor,

como deve ter reparado pelo postal, já aterrei em Cuba (gosta da imagem e da frase?). Bem, paira no ar uma força, uma energia... Devem ser os ecos da revolução e do mito Che Guevara porque se sente em qualquer uma das ruas e cidades que visitei. Sinto-me arrebatada! Aqui, qualquer pessoa acredita ser possível lutar por tudo na vida e viver plenamente. Adoro!

Além disso, é uma terra de belos acasos do destino. Numa das minhas viagens perdi o autocarro de ligação e dei por mim num sitio muito simpático, situado nem sei bem onde. Claro que não desesperei! Como não consigo perder a tradição de perder transportes, decidi aproveitar para conhecer a zona de mochila às costas. Nessa altura surgiu um desconhecido que, assim sem mais nem menos, se prontificou para tornar a minha estadia mais agradável.

Nestas situações, qualquer pessoa tem tendência a ficar desconfiada pois a vida vai diluindo a capacidade fantástica do ser humano para dar e receber sem pensar nos "e ses". A questão é que, neste caso, senti empatia mútua e genuína desde o primeiro minuto.

O moço vive aqui e, ao que parece, trocou as paredes de cimento por um barco. Bem, que liberdade. À sua maneira, é mais um revolucionário! No entanto, tenho que admitir que é um pouco estranho... tem plena noção da vida e parece-me imune à futilidade, mas no meio das suas certezas aceita o facto de andar à deriva.

Já nem falo do produto que distribui (sabe, é ilegal...). Enfim, passámos horas a falar. Pelos vistos, existem duas variantes do produto, às quais chama de "Eudaimonia" (acho que é um termo grego...) e "Summum Bonum"... Disse-lhe logo que se era coisa ilegal não queria saber mais nada do assunto porque quanto menos estivesse implicada melhor, mas a conversa lá continuou e, olhe, acabei por aceitar subir a bordo.
É aqui que lhe escrevo este postal, com as ondas a baterem no casco e a ser embalada pela água. Que sensação!

O moço garantiu-me que o produto é puro, mas descobri lotes adulterados escondidos no porão. Os efeitos secundários desses lotes são preocupantes e, ainda por cima, sentem-se por tempo indeterminado. Eu que o diga! Pois... eu... Olhe, doutor, eu sei que não o devia ter feito... foi mais forte do que eu! Espiei o moço a tomar uma dessas doses (acho que ele não me viu!) e, quando tive oportunidade, experimentei um bocadinho das duas variantes, juntas. Ai, doutor, a experiência foi tão intensa que, por momentos, me senti num universo paralelo. Imagine, se o produto adulterado gera um misto de sensações tão indescritíveis, mas ao mesmo tempo tão reais (sente-se uma certeza estranha, superior a nós mesmos e ao mundo) nem quero pensar nos efeitos da versão pura...

O pior é que não consigo tirar da cabeça este Admirável Mundo Novo (será que basta uma dose para gerar dependência?!). Agora percebo o porquê de existirem tantos compradores. Apesar de nem todos o demonstrarem, a verdade é que nenhum consegue negar a ânsia e muitos deles têm chegado aqui com a mesma história "Vá lá, orienta aí uma dose pequena. É a última, prometo!". Ah, e ainda existe outra questão estranhíssima, que surgiu depois de falar com alguns dos clientes. Disseram-me que este produto tem uma particularidade que o distingue das restantes substâncias ilícitas. Quem se mete nisto tem ressacas descomunais, mas nem sempre dá os passos necessários para conseguir a sua dose e tenta matar o vício com substâncias alternativas...

Doutor, só lhe digo, este produto conseguiria provocar uma revolução mundial!

Talvez faça parte dos efeitos secundários, mas sinto que este encontro em Cuba não foi um mero acaso. Perdi o autocarro para poder encontrar o desconhecido! Não se preocupe, eu sei, tenho que ter muito cuidado para não ficar dependente do produto, até porque desconheço as implicações do vício a longo prazo...


Por agora... já que aqui estou, quero aproveitar ao máximo. Vou mandar um belo mergulho e logo à noite enfrasco-me com rum barato. Só espero não abusar, senão arrisco-me a perder o autocarro... novamente!

Até breve,


A moça do divã

sms

"Olá doutor, bom dia! É melhor desmarcar a consulta de hoje. Peço desculpa pelo incómodo. Eu sei que o apanho de surpresa pois estava à minha espera, mas já me conhece ao ponto de perceber que nada em mim é previsível... Dá-me gozo trocar as voltas à vida :) E, sabe que mais? Vou voar até bem perto do antigo Buena Vista Social Club, yupi! Cuide do divã, ok? Beijinhos e até (muito) breve!"

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Comentários

Tou, dona Deolinda?

Olá, boa tarde, pode passar o telefone ao doutor? Diga? Ele não está?

Ah, pronto. Então, deixe lá, eu volto a lig.... diga? Chegou agora? Ah, então posso falar com ele? Adeuzinho. Sim, sim, a família está bem de saúde, obrigada. Cumprimentos aos seus. Adeuzinho.

Sim, doutor? Olá, boa tarde. Quer que ligue mais tarde ou podemos falar agora? Hum, hum, ok, se não há problema...

Olhe, estou a ligar-lhe para dizer que, sem saber, não permitia comentários às nossas consultas. De facto, estas coisas são como os telemóveis. Uso as funções que me dão jeito e quero lá saber se têm o extra de tirar fotos, fazer torradas (sem queimar...) ou cortar as unhas. Se bem que um telemóvel com corta-unhas...

Diga? Vai dizer-me que não dava jeito... se alguns telemóveis já têm lanterna! Oh doutor, se tiver estômago para isso, imagine aqueles senhores que cortam as unhas nos autocarros. Escusavam de levar duas ferramentas! Ok, ok, a imagem tem tudo de provinciano, passa-se nas grandes cidades e é deprimente... por mais que não lhes negue a perícia para cortar a unhaca certinha apesar das curvas, solavancos, roubos, discussões sem nexo, casos de gripe A e afins... Uma viagem de autocarro é uma experiência marcante.

Doutor, hoje em dia, um telemóvel com lanterna pode parecer uma coisa banal, mas quando apresentaram a ideia deve ter havido muita gentinha a achá-la descabida. Pois, doutor, é como tudo na vida. Inicialmente, receia-se o desconhecido, mas por vezes as ideias resultam e, mais importante ainda, perduram.

Meu caro doutor, a visão e a capacidade de gestão não se devem limitar apenas ao mundo dos negócios. No entanto, também não devemos encarar a vida com base numa noção concorrencial. A vida deve ser encarada como uma associação sem fins lucrativos. Os valores que a fazem mover pertencem a cada um.

Como? Quem apoiaria a associação financeiramente? E quem iria aprovar os estatutos? Oh, doutor, por vezes questiono-me se sou eu quem dá as consultas... Os estatutos? Não preciso da aprovação dos meus estatutos por uma entidade. Não preciso de ter algo escrito para me guiar. O lado delicioso da vida é aquele em que simplesmente existimos e conseguimos sentir-nos nós próprios. Sentir o presente na nossa pele e não apenas em relação ao que nos rodeia, às memórias ou ao futuro.

Claro, claro, doutor, tem toda a razão. O que nos rodeia é importantíssimo e, curiosamente, é o todo que contribui para a individualidade de cada pessoa. No entanto, o ser humano evolui a partir do momento em que interioriza o que o rodeia e se expande.

Entende? Não entende... ok. Então, deixe-me colocar a questão de outra forma. Os comentários de quem me rodeia são importantes. É uma maneira de perceber que fui ouvida e que fiz os outros pensarem sobre determinado assunto (ou mesmo um simples devaneio), mas recuso-me a receber e a guardar tudo na caixinha cerebral.

Tudo o que nos rodeia deixa as suas marcas, obviamente, algumas muito mais profundas do que outras. É então que a magia acontece... expandimo-nos para além do mundo de modo a que consigamos ver-nos a nós próprios quando nos olhamos ao espelho e não apenas mais um produto social. (Já falámos da questão dos espelhos noutra consulta...)

Doutor, é um truque de magia tão simples e não perde a capacidade de me fazer sorrir como os putos... mesmo que, por vezes, seja necessário tirar o vapor do espelho. Pois, doutor, o vapor são os comentários aos quais damos demasiada importância. Tudo o que é belo e genuíno não gera vapor, gera brilho nos olhos.

Ah, doutor, e como é fantástica a sensação quando o vapor desaparece e conseguimos encontrar-nos do outro lado, de cara lavada... Puff, a magia acontece! Agora, imagine quando essa magia se partilha...

Percebeu agora, doutor? Doutor? Touuuuuu? Doutor, está a ouvir?

Oh não, fiquei sem bateria...

Casas com janela

Olá Doutor,

Estou de volta e desta vez não trouxe músicos. Estamos em pleno Verão e custa-me pedir-lhes para arranjarem um espacito durante as tournées. Havia um ou outro disponível, mas não me agradavam e, já sabe como é, queremos sempre aqueles que já têm a agenda cheia.

Olhe, mas hoje vim cá para lhe falar de casas. Sim, mais especificamente, de uma casa minha.

Encontrei esta fotografia e a cabecita não resistiu, meteu-se a pensar, a pensar, a pensar... pois, já lhe disse que sofro de um caso grave de introspecção aguda. Eu bem que tenho tomado os comprimidos de ginseng e maturidade que me receitou, mas tem dias em que é mais forte do que eu...

Verdade seja dita, estou muito melhor! Ultimamente, também ando a fazer um tratamento à base de pensamentos positivos e sinto-me meio dopada. Ainda esta semana dei por mim a pensar que a
vida é demasiado curta para que deixemos de beber o brilho de tudo o que nos rodeia.

Bem, mas voltemos à foto. Esta é a vista da minha última casa (minha, todinha, só minha... pronto, e da senhoria...) e posso garantir-lhe que passei horas a ver aquela imensidão que me arrebatava de cada vez que ia à janela. Aquele é o único azul de que gosto e, além disso, nas noites de lua cheia a vista enchia-se de glamour pois o negro transformava-se em prata.

Eu tenho plena consciência de que naquela altura deveria ter passado por aqui mais vezes, ter-me-ia ajudado bastante nos dias em que deixei de ouvir o mar e me recusei a olhar para ele. Nesses dias, f
echava a janela e quando dava por mim tinha sido engolida por um mar diferente... o mar de gente que se move todos os dias para os mesmos sítios. Pequenas formigas que não são felizes nem infelizes porque já não sentem, já não se maravilham, já não sabem partilhar..

Aquela imensidão fez toda a diferença, sabe porquê, doutor? O mar tem uma energia fantástica. Muitas vezes sinto que somos um, é através dele que chego ao outro lado do mundo e ele foi chamando, sempre, mesmo quando eu tapava os ouvidos.

Hoje, ao encontrar esta foto, percebi a mensagem que esteve o tempo todo do lado de fora da janela... e dentro de mim.

O mar revelou-me que, a
pesar da sua grandeza e calma aparentes, se renova a cada onda e que a felicidade surgirá quando aprendermos a vibrar de cada vez que a água conquista a areia. Aquela imensidão é a imensidão da vida e a cada onda corresponde um momento.

Diga, doutor? Quer a foto? Claro que pode ficar com ela!

Sabe, o importante é chegarmos a casa e abrirmos a janela...

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

O teu bem faz-me tão mal...

Olá, dona Deolinda, como está?

Não, hoje não tenho consulta. Vim só deixar este recado para o senhor Doutor. Nem precisa de o chamar.

Sabe, é que algumas músicas entram no ouvido, viram-nos do avesso e nunca mais nos saem do corpo... mesmo quando as próprias músicas apenas viradas do avesso fazem sentido...

Ele que clique no link, analise a situação e depois falamos.

Pronto, está entregue!

Adeuzinho e até à próxima.

Banhos de água fria

Posso entrar, doutor?

Nem cheguei a sair do edifício e já estou de volta...

Não podia deixar de lhe falar sobre as férias deste ano, mas tem que ser rápido porque estou a ficar com fome e o Yann Tiersen está lá fora à espera...

Hummm... Na verdade, fazer férias do desemprego pode parecer inconsciente e rir sem parar por confundir uma entrevista de emprego ali na esquina com uma viagem por metade do país até faz corar, mas soube tãããããããoooooo bem :)

Apesar do bar lounge com música da treta, minis sem copo e tremoços (lounge? oh sim, o bar estava muito "lounge" do conceito). Apesar das palmadinhas hardcore na tenda do lado (não sei se a pele ficará esplêndida dessa maneira, mas... sei lá... tratamento revigorante?). Apesar da chuva de areia em plena praia paradisíaca. Apesar do confronto com o ego profissional ao invadirem a minha realidade com as gravações de uma novela qualquer. Apesar do receio de conduzir descalça com dois meses de carta (sou radical, acho que vou colocar um néon no Clio). Apesar das ressacas, mental e física, com cheiro a sardinha. Apesar do meu cotovelo perto de narizes alheios. Apesar das substâncias ilícitas colocadas nas bebidas (pelas doses utilizadas, devem estar em promoção!). Apesar de um Borba branco (ok, ok, é vinho, siga). Apesar dos banhos de água fria...

Pois, Doutor, os banhos de água fria são um elemento constante nas minhas férias, as do desemprego e as do quase-emprego (como serão as férias a sério? daquelas com subsídio e tudo?).

Sabe o que lhe digo? Se os banhos de água fria surgem sempre no meio de tantas coisas boas... Então, apanhar com baldes de água fria não custa assim tanto...

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

A perfeição gera azia...

Olá Doutor...

Sim, regressei ao meu divã virtual... Obrigada por ter acedido ao meu pedido, convidando o Yann Tiersen para estar presente nesta sessão. O Yann tem aquela capacidade fantástica de me fazer teclar como se tocasse piano.

Ai ai, a introspecção... Pensando bem, Yann, obrigadíssima por teres vindo, mas.... podes sair. A sério! Ah, e já agora, podem entrar... Hello! Yes, yes, come in...

Doutor, estes são os Bloc Party. Passe aí a cadeira para o moço se sentar. Sinceramente, prefiro que sejam eles a estarem presentes. Neste momento, preciso que me empurrem para longe da introspecção que, em excesso, provoca colesterol no cérebro.

Por vezes (e são muitas), tenho a sensação de que pensar muito é sinónimo de viver pouco. Perde-se tanto tempo a pensar nas coisas e acções nada, nadinha, rien. O mundo não acontece dentro da nossa cabeça... apesar dela ser um ponto de partida para a conquista e derrube de quaisquer limites.

Diga Doutor, ah, não estranhe, estes jovens são os The National, também os convidei. Pois... tem razão, já é muita gente cá dentro... Bloc Party, yes, you can go. I'll call you latter. Yep, i know that you need to fly away, but, remember, distance is not enough to keep people apart. I'll send a message or an e-mail. Great! Bye, take care.

Ai, doutor, desculpe lá este entra e sai, mas hoje não consigo estar quietinha a ouvir música e a falar aqui consigo. Preciso de energia, energia a transbordar, para não chegar a perceber o estado da minha. Não, não quero falar sobre isso...

Olhe, pense assim, hoje tem aqui um ambiente de festival de Verão e eu ainda lhe pago a sessão. Aproveite, não complique as coisas. Mas, que queixas dos vizinhos? Oh, por favor! Não me diga que estes não cantam bem? Esta parte da música é excelente!

Quer dizer, tem aqui dentro um momento fantástico e está preocupado com os vizinhos? Quando isso me acontece, apetece-me ir para a rua despida. Assim vêem tudo, sem panos sociais. Tudinho. Desde que não coloquem os vídeos no youtube, nem as fotos no hi5, está tudo bem...

Complicar para quê? O ser humano acha sempre que o lado complexo da vida é sinónimo de... Ei, meninos, essa música não. Outra, play another one, please. Thanks. Bem, como estava eu a dizer - oh doutor, não gosto daquela música, esta não é melhor? - o ser humano acha que complicar é sinónimo de evolução. Não concordo. A vida tem tendência a cruzar os vários fios que fomos tecendo com o passar do tempo. A possibilidade de se gerarem nós é imensa, mas o mais importante é garantir que o novelo saia perfeitinho.

Ui, perfeitinho... pois, a velha questão da perfeição... Sabe, aqui para nós, a perfeição em demasia pode gerar azia. Ai, a perfeição... - olhe, foi uma falha minha, bem que podia ter convidado os Donna Maria para virem cá, imagine-os a tocarem o tema "Quase perfeito", até arrepiava! - A perfeição... A perfeição é uma busca tão irracional. E depois? E se surgirem nós? Desespera-se? Ai, que raiva! Não, inspira-se, desfaz-se o nó com paciência e continua-se o novelo... mais uma volta... mais uma volta... sem perder a capacidade de rir do mundo. É que cada sorriso torna o novelo menos cinzento...

Olhe Doutor, quero sair daqui! Vou dar mais uma volta no novelo com o Yann Tiersen e pedir-lhe que me cante o "Monochrome" enquanto descobrimos o mundo como os putos, de forma simplesmente hilariante e colorida.

Até breve...? Nunca se sabe quando me apetecerá voltar... Fique descansado, eu aviso :)

Ah, tem lá fora alguns dos músicos que eu convidei. Dizem que, já que aqui estão, aproveitam para falar consigo... Enfim, deixe-os usar o meu divã... já sabe que só o partilho com aquelas pessoas cuja existência contribui para a grandeza do meu novelo.