quinta-feira, 13 de maio de 2010

Vidas cor-de-rosa

Ai Doutor, finalmente pude entrar!

Tenho estado ali fora a ler revistas cor-de-rosa cheias de histórias tão medíocres que tive de tomar dois comprimidos de inteligência para não ficar afectada! Pude perceber que a Dona Deolinda as devora e o pior foi quando decidiu partilhar comigo todos os pormenores sórdidos. Se já sentia falta do divã, as leituras e as fotos deixaram-me mais do que ansiosa.

Vou esticar-me... Aahh... agora sim, estou bem!

Sabe, ao folhear a terceira revista não aguentei mais e tive que sair da recepção para apanhar ar. Como é possível divulgarem pormenores tão... sei lá, nem tenho palavras simpáticas... tão insignificantes das vidas dos outros? Que me interessa se a apresentadora X usou uma saia sem se preocupar se o trapito em questão fazia pandan com a pochete? Ela ia ao cinema, lá dentro está escuro!!

Por norma, não é necessário esperar muito aqui no consultório, mas nos sítios em que existem as famosas "salas de espera" - prova explícita da fraca qualidade do serviço pelo qual aguardamos ansiosamente - é preocupante a forma como esta parafernália de boatos sobre vidas alheias serve como tónico gratuito para entorpecer os utentes.

Três horas numa sala triste cheia de revistas velhas e com a tv a transmitir programas deprimentes é o suficiente para que muitos dos acompanhantes dos doentes passem a precisar de algum tipo de medicamento para a ansiedade ou a depressão. Mais um estratagema da indústria farmacêutica e dos hospitais para fazerem dinheiro, só pode!

Não me surpreenderia se algumas dessas pessoas se descontrolassem e iniciassem autênticas revoluções logo após olharem para o número impresso naquelas senhas com uma forma e cor esquisitas... (como é possível que a senha de espera do talho seja igual à do centro de emprego?)

Aos mais destemidos depressa marcariam uma consulta e, quando dessem por si, estariam a ouvir o discurso "Olá, eu sou o seu psiquiatra e, primeiro que tudo, deixe-me dizer-lhe que existem mais pessoas com desordens cerebrais crónicas iguais à sua. O seu processo refere que se descontrolou quando veio acompanhar o seu primo ao hospital. É importante percebermos o porquê de você ter atirado uma cadeira à enfermeira quando esta lhe disse que teriam de aguardar mais duas horas porque o senhor doutor tinha decidido ir almoçar a Cascais... A sua reacção tornou-se violenta quando percebeu que o restaurante ficava a duzentos quilómetros ou quando a moça lhe disse que tinha à sua disposição muitas revistas com que se entreter e para o seu primo ir estancando a hemorragia com lenços de papel?".

Oh Doutor, e que tal colocarem pay-shops nas salas de espera? Assim sempre dava para pagar a água ou a luz nas horas mortas. Ou, então, apostarem numa vertente mais pedagógica e darem cursos de iniciação de primeiros-socorros. Ou até, quem sabe, organizarem speed dates! Pelo menos, a espera seria mais dinâmica e as pessoas sairiam das salas de espera felizes. "Sim, fofinha, os papás conheceram-se na sala de espera da repartição de finanças. Lembro-me como se fosse hoje!"

Diz o povo que "quem espera, desespera". Lá está o problema de sempre!

A questão não é a espera, mas sim a forma como se lida com o momento. Nada é eterno, quer seja bom ou mau, e se tal pensamento reconforta nas piores fases, há que ser maduro o suficiente para saber usufruir e prolongar as melhores alturas. Além disso, quantas vezes percebemos que a espera é, afinal de contas, o início de uma nova e belíssima fase...

Olhe Doutor, aqui para nós, a minha vida ocupa-me vinte e quatro horas por dia e o tempo ensinou-me a importância de rentabilizar as minhas esperas com a leitura de histórias interessantes (escritas na primeira pessoa ou em parceria com indivíduos genuinamente importantes para a minha paz de espírito).

Ah, e não existe coisa mais irritante do que seres pequeninos com vidas da treta a tentarem esticar-se para aparecerem nas fotografias. Se procuram emoções fortes compatíveis com os seus quocientes de inteligência podem sempre ler uma revistinha cor-de-rosa...

sábado, 8 de maio de 2010

Olá Doutor, posso entrar?

Deixo o chapéu onde? Aqui no canto? Vai molhar o chão, há problema? Pronto, ok, fica aqui.

Que dia de chuva, aliás, que meses de chuva! O céu tem chorado tantas lágrimas. Serão algumas delas lágrimas de alegria? Hmm...

Não sei que lhe diga... A raça humana chegou à fase em que parece um adulto com insónias a consciencializar-se de que deveria ter tomado outras opções na vida, mas nem assim deixa os "velhos" hábitos e vícios por puro comodismo. Sim, o céu tem razões para chorar, só um bocadinho, até nos devolver o sol na esperança de que o ser humano passe a merecê-lo.

Estar para aqui a falar no céu não é por acaso. A caminho do consultório, enquanto segurava no meu chapéu de chuva e me maravilhava com um passeio pelo silêncio, cruzei-me com alguns peregrinos. Pessoas simples de coletes coloridos, em contraste com o cinzento do dia.

O encontro fez-me pensar na fé. Sim, doutor, na fé e na força que leva pessoas a caminharem quilómetros sob gotas pesadas. É quase como se cada gota os fosse lavando por fora, enquanto a caminhada os lava por dentro, e o peso da roupa molhada equivalesse ao desconforto da alma.

Sabe que sou agnóstica e tendencialmente contra qualquer tipo de hierarquia (imposta ou submissamente aceite) que retire ao ser humano a noção do poder inato para mudar a própria vida, mas a fé... A fé consegue, de facto, mover montanhas.

Apesar de existir a séria possibilidade de se tratar de publicidade enganosa, a verdade é que o plano de comunicação e marketing é de uma eficácia espantosa por fazer as pessoas acreditarem em algo de forma tão forte que as leva a... agir! Sim, é fantástico como o "jogo" funciona. A fé é um misto de "acreditar" e "ter esperança", consegue que algo cresça por dentro e se expanda para as acções. É de génio!

Apenas lamento que a comercializem e condicionem em prol de valores (des)moralizantes, assentes em noções de "mártir", "castigo", "pecado" ou "dever". A fé, independentemente daquilo em que cada um acredita, não deveria ser um instrumento de submissão e limitação, antes pelo contrário.

Já imaginou se o ser humano pegasse na fé e a transformasse em algo que se partilha livremente, com o objectivo de reforçar a empatia e o respeito mútuo?

O problema das religiões é o mesmo dos clubes de futebol, movimentam quantias exorbitantes e geram ganância. Obviamente que o futebol se trata de algo menor. No entanto, não considero que a comparação seja descabida de todo.

Cada clube tem os seus adeptos, os seus jogadores, os seus estádios, os seus treinadores e as suas tácticas de jogo. Podem divergir em muita coisa, mas a finalidade é a mesma, garantir que as onze pessoas em campo conquistem uma vitória.

Ainda não percebeu onde quero chegar, pois não? Pense comigo, cada religião tem a sua "equipa", os seus "adeptos", o seu "treinador" e as suas "tácticas" e há séculos que andam nos mesmos derbies com o objectivo de ganhar. Se excluirmos Judas, um dos "vendidos" mais conhecidos da História, Jesus contou com um belo onze inicial em campo! Pronto, o Judas pode ficar com o papel de árbitro corrupto...

No meio de tantas teorias confusas e treinadores de bancada, começo a duvidar se alguém se lembra do objectivo primordial do jogo. Todos fixam a baliza, mas esquecem-se... da bola! Sim, a bola, o meio para atingir o tão almejado fim. O que está em jogo, Doutor, é a mensagem!

A força da fé devia fazer-nos querer mudar montanhas para que todos tivessem direito a um espaço justo, a uma vida valorizada, sem medo de castigos divinos. Esse é o principal problema da fé fabricada em série, gerar medos e angústias infundados!

Ok, eu sei, há muita gentinha que merecia um "apertozinho" no túnel...

No entanto, convenhamos, não somos eternas crianças a quem é necessário ensinar a distinguir o bem do mal. Supostamente, deveríamos evoluir e tomar essa decisão sozinhos, com base em coisas tão simples como a felicidade (nossa e alheia).

Os castigos divinos não são mais que meros claims propagandistas de regimes espirituais... Quase consigo imaginar o Ser Supremo com voz de Nina Simone a apontar-nos o dedo e a cantar "I put a spell on you, 'cause you're mine/You better stop the things you do/I ain't lyin/ No, i ain't lyin".

Sabe... até me custa afirmar isto... o mundo ainda não está perdido, mas basta pensar um pouco nestas coisas para me questionar até que ponto a minha fé na raça humana não se trata de mera utopia...

Doutor, reparou? O dia ficou mais claro de repente. No meio de tanta nuvem consegui sentir o sol a brilhar... Afinal, ainda o merecemos!