domingo, 27 de junho de 2010

Chilreares pimba

Boa tarde doutor! Como está?

Vim um pouco na dúvida se o encontraria aqui. No final de contas, é domingo...

O fim-de-semana tem sempre uma carga emocional enorme, são os dias passados em família ou com os amigos. É quase obrigatório fazer alguma coisa!

Pois bem, eu já tive a minha dose social e optei por vir até cá. Se, por um lado, sentia necessidade de me esticar um pouco no divã, por outro, posso admitir que o consultório se afigura hoje como o refúgio ideal de algo completamente diferente dos problemas habituais.

Ao chegar a casa deparei-me com uma festa dos vizinhos recheada de música pimba e vuvuzelices... "Tens um sorriso maroto que me leva à loucuraaaaa" fon fon (vuvuzela) "qualquer homem que se atreva a olhar para tiiiiiii" fon fon foooooonnnnnn (a vuvuzela continuava, quase como se Portugal estivesse em crise... ups, desculpe, em campo...).

Doutor, não é fácil viver no campo! Quem disse que isto é calmo nunca cá viveu!

Vida bucólica? Silêncio? Chilrear dos passarinhos? Boatos, é tudo uma cabala preparada para atrair os mais desatentos e eu... bem... eu vim ao engano!

Espero, sinceramente, não ter sido a única a cair na armadilha e que vagueiem por cá outros seres ingénuos, outros outsiders que conjugam as experiências do passado, lutam no presente e nem sequer querem pensar na possibilidade de se acomodarem no futuro. Eles existem, eu sinto-o...

Apesar de tudo, a vida por aqui é facilitada quando em tempos se viveu na cidade e a falta de tempo desenvolveu a capacidade de dar valor ao que verdadeiramente importa. Por aqui, o excesso de tempo nem sempre é benéfico, a maioria dos "nativos" (nem todos, note-se) perde momentos preciosos a falar na vida dos outros e em mil crises existenciais insignificantes.

A cidade não é perfeita, rouba-nos anos de vida, mas também não permite que a mente fique dormente. Na pior das hipóteses, leva a que o excesso de informação e acontecimentos resulte no adiamento recorrente das coisas que se deviam fazer na hora e se perca o tempo em fases intermédias. "Agora não, vou depois, meto-me lá num instantinho (por "instantinho" leia-se "uma hora nos transportes públicos com fortes possibilidades de se ser assaltado").

No campo as coisas são diferentes.

Não, doutor, não é apenas devido à inexistência de transportes públicos, mas acima de tudo porque a informação não vem ao nosso encontro. O campo gera a ânsia de procurar razões para sair daqui várias vezes por mês de modo a evitar que a apatia do interior nos engula. Ah, sim, porque para muita gente é preferível manter o que sempre tiveram, mesmo que essa teimosia implique o atraso contínuo de uma região situada a uma hora e meia de carro da capital.

"Olh'ó polícia. Olh'ó polícia sinaleirooooooo" fon foooooonnnnnnn

Ai, doutor, algumas das músicas da festa da rua não me saem da cabeça! Será que fiquei afectada? Será que me irão convidar para a próxima "loucura" e terei que fazer um bolinho para levar??

"És a brisa do meu bananal..." fooonnnnnn

A brisa do meu ba... na... nal? Isto é grave, doutor, muito grave!

Continuando - vou tentar afastar da cabeça outras músicas com letras igualmente... poéticas... - as diferenças campo/cidade são inúmeras. No entanto, é-me impossível dizer qual o melhor sítio para me partilhar. No fundo, sinto que nenhum é melhor ou pior. São, simplesmente, diferentes.

A vida tem que abarcar um número infindável de novas experiências. Só assim daremos valor quando nos depararmos com as mais profundas e ponderaremos quais as que queremos prolongar.

A vida plena - a eterna razão da existência humana - apenas faz sentido quando sentimos a alma a mexer cá dentro e o arrepio inesperado surge vindo sabe-se lá de onde. Isso, sim, é viver e ter histórias para contar aos netos. De outra forma, apenas prolongaremos a inépcia e a indiferença da espécie humana.

O mundo é uma bola gigante, cheio de pequenos seres que se acotovelam na esperança de ficar na fila da frente do maior evento planetário, a vida. Talvez evolua quando alguns desses seres contarem aos netos que durante tal acontecimento ímpar se divertiram no meio da multidão e conseguiram sentir a essência do convívio e da partilha... Essa responsabilidade é nossa, desta geração que fecha os filhos em casa a teclar com pedófilos ou a jogar computador sem que tenham consciência de que a vida é uma sucessão de joelhos esfolados, cujas feridas provocam lágrimas, mas se curam com o tempo.

Bem, doutor, a sessão terminou por hoje. Talvez passe por uma pastelaria e compre uns docinhos tradicionais para partilhar com a vizinhança. Quer vir? Se há coisa que os anos me ensinaram é que os lugares pouco importam. Importam, sim, as pessoas com as quais os partilhamos.

Então? Vem?

Óptimo, é preciso coragem! Quando saí de casa vibrava no ar fooonnnn fooonnnnn "Lá vai Lisboa... com a saia cor de mar..."