segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Um sonho lamecha...

Olá Doutor,

Está tudo bem consigo? Tem tido muitas consultas? O divã está sempre impecável. É a dona Deolinda que o limpa? A pessoa entra e apetece logo esticar-se. Deve ser da cor.

Olhe, por falar em cor, lembrei-me de um sonho que tive há pouco tempo. É um bocadinho piegas e nem parece nada meu, mas acordei tão bem disposta nessa manhã... Sabe - isto fica entre nós - nesse dia até acreditei que o lado piegas da vida pode ter piada.

Quer que lhe conte o sonho? Ok, então aqui vai... Espero não saltar as partes melhores. É que ainda não me consegui lembrar se hoje tomei os comprimidos para a memória!

Ora bem, o sonho começava com o bobo da corte, que vestia de amarelo e vermelho (bela conjugação). Todo ele era energia. Todo ele era vida. Todo ele era gargalhadas. Todavia, o bobo era uma pessoa triste por dentro. Fazia os outros rir quando era ele quem mais de um bobo precisava.

A rainha parecia nem perceber o quão cinzento o bobo se sentia. Ela mantinha a sua pose e não demonstrava qualquer empatia, logo, não lhe devia interessar se o bobo era feliz. A presença dele fazia-a sentir bem e isso parecia ser o suficiente.

Até que, um dia, o bobo não apareceu...

A rainha estranhou o sucedido e, indo contra os seus conselheiros, mandou procurar o bobo por toda a parte. O bobo foi procurado em cada divisão de casa de cada aldeia... em vão. Ninguém tinha posto os olhos em tal personagem, o que era estranho, uma vez que amarelo e vermelho se vêem bem à distância e um bobo não passa despercebido!

O bobo tinha partido e a rainha sabia-o, mas recusava-se a acreditar que nem uma piada lhe tinha deixado... algumas palavra que a fizessem sorrir ou corar. Irritava-a, sobretudo, custar tanto que bobo tivesse levado com ele as cores vivas, deixando o palácio mais cinzento. Por onde andaria?

Por volta da mesma altura, surgiu um estranho no reino. Um homem simples, calado, que passava horas e horas a olhar para o palácio. Aquele homem intrigava toda a gente, menos a rainha, que passava essas mesmas horas a pensar no bobo. Como a vida se tinha tornado estranha sem ele... Aquela presença colorida era única no seu salão. Sobressaía em cada frase, cantava, tocava instrumentos musicais, cortava as teias do socialmente correcto e olhava para ela sem deixar que o silêncio fixasse no tempo a troca de olhares. O bobo fazia falta.

O visitante do reino, pelo contrário, raramente tirava os olhos do chão e falava muito pouco. Os habitantes temiam alguém tão introspectivo, cujos ombros descaídos suportavam um peso invisível. Que peso seria aquele? Os boatos eram muitos e as certezas poucas.

Os anos foram passando e a rainha continuou a sua vida, com inúmeras responsabilidades. O palácio, contudo, tinha mudado. Era agora um espaço vazio de conversas e sorrisos. Os grandes jantares no salão continuavam, mas sem bobo. A rainha passara a repudiar as cores amarelo e vermelho e condenava as gargalhadas. Uma gargalhada era, para ela, sinónimo de solidão, de saudades, de raiva, de coisas incompreensíveis.

Por sua vez, o desconhecido tinha feito alguns conhecimentos (apesar de ninguém o conhecer verdadeiramente) e passara a frequentar os grandes banquetes reais. No entanto, as horas no salão eram para ele horas de silêncio, a olhar para a rainha. Ela sentia aqueles olhos na sua pele, nos talheres com que comia, no copo em que bebia, em cada fibra do seu vestido. Deveria chamá-lo à atenção para tamanha falta de cortesia? Só o bobo podia olhar para a rainha daquela maneira.Todos os outros, mesmo os seus pretendentes (muita quantidade e pouca qualidade), não se arriscavam fazê-lo.

Na verdade, a rainha sentia-se sozinha, mesmo estando constantemente rodeada pelos seus inúmeros servos, aias, conselheiros e afins. Tinha por hábito subir até ao cimo da torre mais alta do palácio e contemplar o que havia conquistado, tentando convencer-se de que tudo aquilo era imenso e seu. Para quê querer mais? Ainda por cima, para quê sentir que precisava de algo cujos nome e forma desconhecia? Nem ela percebia muito bem o que faltava na sua vida grandiosa, repleta de riquezas...

Certa noite, a rainha decidiu encarar quem a fitava. Inicialmente hesitou, mas depressa reparou que o estranho homem continuava a olhar na sua direcção e usava um lenço com as cores que ela mesma (sim, a rainha!) tinha repudiado. Que afronta! Como podia aquele desconhecido julgar-se no direito de dominar o tempo ao ponto de o abrandar quando os olhos de ambos se encontraram? E porque usava ele aquelas cores?

O bobo tinha partido e aquele homem, que de bobo nada tinha, fazia-a corar. Corar? Ainda por cima, alguém que não possuía o dom de a fazer sorrir porque não falava com ela, dela, da corte, do reino, dos pequenos tudos e dos grandes nadas. Aquele homem não a fazia pensar no que a rodeava. Aquele homem nunca lhe dirigira a palavra... e com um simples olhar... tinha dito muito...

A rainha levantou-se, justificou a sua saída com uma leve indisposição (de facto, tinha uma estranha dor no estômago) e regressou aos seus aposentos. Naquela noite dormiu... naquela manhã dormiu... naquele dia dormiu... naquele mês dormiu... naquele ano dormiu... Os médicos vieram de toda a parte e nada. Até a bruxa da aldeia foi chamada, sem resultados. Ninguém conseguia acordar a rainha, que se mantinha adormecida com um estranho rubor nas faces e um leve sorriso nos lábios que ninguém compreendia.

Fizeram-se reuniões atrás de reuniões. Os conselheiros da rainha não tinham solução para o problema em mãos.

O palácio tinha adormecido com ela. Reinava um silêncio perturbador e até nas casas da aldeia se sentia, passando a fazer parte das colheitas, das refeições, das conversas. Ninguém ousava fazer barulho, como se receassem que a rainha acordasse. Na verdade, todos desejavam que tal acontecesse, mas uma rainha era soberana e se ela queria dormir, tinha que ser respeitada.

O estranho que havia chegado anos antes continuava a sentar-se no pátio que dava para o palácio e olhava para a janela do quarto da rainha com um brilho nos olhos que os restantes habitantes consideravam ofensivo. Havia quem defendesse que era um velho mago que habitava as montanhas desde que havia memória e que tinha lançado um feitiço, mas ele de mago nada tinha.

O que faria ele ali? No que pensava? Percebia-se que estava num dilema, mas ninguém se arriscava a perguntar-lhe o porquê do brilho nos olhos se intensificar de dia para dia. Aquele era o brilho da certeza... O suposto mago ali ficou durante tempos infindáveis, até que, para espanto de todos, pediu uma audiência aos conselheiros reais...

Do que falaram nunca se soube, mas numa manhã em que o vento acariciava as folhas das árvores, o estranho homem, a última pessoa a olhar a rainha nos olhos, entrou no quarto onde esta dormia. Fechou a porta e, muito lentamente, começou a tirar as peças de roupa, uma a uma, até ficar despido. Então, sem fazer barulho, pegou no saco que trazia consigo e vestiu um traje colorido. O amarelo e o vermelho tinham a mesma vida de antigamente, apesar de terem estado guardados num velho armário.

Deitou-se na cama ao lado da rainha, beijou-lhe as faces rosadas e segredou-lhe qualquer coisa ao ouvido. A rainha mexeu as pálpebras ao ouvir aquelas palavras e, de repente, acordou.

O bobo sorriu, a piada tinha resultado. A mesma piada que o tinha feito partir sem se despedir, fazia agora com que a rainha regressasse do seu mundo interior. Um mundo que ele tinha conhecido de cada vez que a olhara nos olhos.

A rainha encarou o bobo, sorriu e com uma voz muito rouca, típica de quem acorda de um sono pesado, pediu-lhe "Conta-me a piada outra vez". O bobo inclinou-se sobre a rainha, tocou ao de leve nos lábios dela com os seus e voltou a segredar-lhe algo.

"Porque não me contaste antes?", perguntou ela. Ele respondeu "Porque naquela altura apenas rias do bobo amarelo e vermelho, sem perceberes que eu também queria estar ao teu lado de cada vez que choravas no cimo da torre mais alta. Quero partilhar contigo momentos de todas as cores". Sorriram e adormeceram, aninhados um no outro.

Doutor, eu bem disse que o sonho era lamecha. Deu-me para isto!

De qualquer das maneiras, a piada que os uniu era simples e inteligente. São poucos aqueles que a compreendem e raros os que a partilham, cúmplices, deitados numa cama...

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Pessoa

Boa noite Doutor,

Eu sei que estou atrasada, mas cruzei-me com uma pessoa muito peculiar à porta da Tabacaria. Um senhor que estava a pedir moedas em troca de poesia (e que poesia!), recheada de uma pureza e simplicidade que raramente se encontram. Mais tarde compreendi que o dinheiro é para o absinto e para o ópio...

Enfim... vinha eu a caminho da consulta, entretida com alguns ecos da vida no interior da minha cabeça, quando ouvi uma voz a dizer "Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.". Os versos mexeram tanto comigo que voltei atrás para saber quem andava a dizer tamanhas heresias para a sociedade actual.

A beleza dos sonhos é única e admitir que se tem todos os sonhos do mundo dentro de si pode gerar incompreensão, sobretudo daqueles para quem os sonhos são coisas de crianças e batem no peito com orgulho enquanto bradam aos céus a sua mediocridade "Sonhar, mas brincamos ou quê?! Isso faz-se na sesta da escolinha. A vida de adulto não tem sonhos, tem rotinas, sem direito a brilho nos olhos ou a sorrisos! Eu que te apanhe a sonhar outra vez e levas uma bofetada daquelas. Tens dez anos, pá, já és crescidnho!".


Afinal, aquele que se assumia como sonhador num mundo de adormecidos estava sentado numa simples cadeira de madeira, no passeio de uma rua cinzenta. Parei e ganhei coragem para lhe fazer um atropelo de perguntas "E quantos são os sonhos do mundo? Já os contou? Como pode um único ser aguentar tantos sonhos juntos sem ensandecer?"

Ele arregalou os olhos, endireitou os óculos arredondados, apagou o cigarro e ficou especado... a ler-me a alma. Doutor, aquele minuto custou tanto a passar. Até me passou pela cabeça "Pois, quem te manda meteres-te com indigentes. Agora vais ser assaltada!".

Pouco depois, o senhor lá se apresentou como sendo "o Fernando, nos dias em que não é os outros" e, sem qualquer pudor, respondeu "
Por isso eu tomo ópio. É um remédio. Sou um convalescente do Momento. Moro no rés-do-chão do pensamento. E ver passar a Vida faz-me tédio.". A revelação foi de tal forma surpreendente que fiquei sem palavras...

Tudo bem que todo o poeta (enquanto criativo) necessita da sua fonte de inspiração, mas aquele homem precisava de ajuda. A medo, comentei "O tédio tem efeitos nefastos na vida, mas não é o tédio uma pequena gota do imenso oceano que nos torna seres humanos? Vai deixar que essa pequena gota ofusque a beleza de algo tão grande? Quantas gotas de coisas belas irá desperdiçar, centrando-se apenas nesta? Diga-me, Fernando, você consome ópio sempre que se sente entediado?"

Voltou a ficar especado e, do nada, sussurrou na minha direcção "
Outras vezes oiço passar o vento, E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido."

Achei que estava a conquistar a confiança dele aos poucos e aproveitei para lançar uma das minhas dúvidas existenciais "Sentir o vento pode tornar um momento perfeito, mas serão suficientes estas pequenas delícias do quotidiano para que a vida seja plena?".

Cravou-me um cigarro, acendeu-o e olhou em volta, enquanto dizia "A espantosa realidade das cousas. É a minha descoberta de todos os dias. Cada cousa é o que é, E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra, E quanto isso me basta.". Deu mais uma baforada e concluiu "Basta existir para se ser completo."

Nem estranhei o facto dele falar de forma estranha e, ao ouvir a última frase, entusiasmei-me "Olhe, eu concordo que cada dia deva ser uma descoberta e, sim, tudo vale por si mesmo. No entanto, ser completo por vezes é mais complexo do que devia. Não me diga que basta existir. Como basta existir? A existência é tão longa e feita de tantas coisas! Acha que se consegue meter tudo num saco e seguir viagem? Com o passar da vida, o saco torna-se mais pesado. Não é assim tão simples, pois não? Por vezes, nem eu não consigo sentir a ligeireza da existência...".

Ele parou de fumar, pegou na minha mão - ai, Doutor, assustei-me com o gesto - e com a maior das calmas entregou-me um papelinho muito velho onde se lia "O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem."

Li o papel várias vezes, questionando-me se este homem que troca poemas por moedas conseguiria, de facto, ler almas. O valor das coisas, o valor da vida... tudo isso revelado num pequeno papel, cheio de dobras e mais dobras...

"Posso ficar com o papel?", perguntei.

Ele anuiu, largou-me a mão, levantou-se e seguiu caminho...

Doutor, como foi possível ter percorrido aquela rua durante dias, a caminho das minhas próprias divagações, sem ter parado uma única vez para escutar esta Pessoa? Nunca tinha reparado sequer na cadeira...

Será que amanhã ele volta a existir naquele passeio?

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Eremitagens

Doutor... posso?

Aviso-o já de que hoje só me apetece dizer parvoíces e começo por lhe dar a notícia de que decidi tornar-me eremita. Sim, eremita... em Marte!

Contactei uma empresa imobiliária, a REMarte, e até agora só me souberam dizer que as condições do solo marciano não são as melhores, que aquilo tem pó por todo o lado e que a viagem demora que se farta, mas mesmo assim... Acho que um eremita que se preze procura um sitio isolado e a julgar pelas fotos da NASA, mais isolado do que aquilo não há. Além disso, eu gosto de vermelho!

Para ser sincera, estou indecisa entre Marte e as Berlengas...

Se escolhesse as Berlengas, sempre gastava menos na viagem, podia viver no farol e teria uma ou outra gaivota para falar de vez em quando. Além disso, eu vou para qualquer um destes destinos porque quero estar em paz comigo mesma. Imagine que aparece alguma malta de Marte sem eu estar à espera?

Tudo bem, eu tive aulas de Protocolo, mas apenas a nível mundial. Sem noções de Protocolo Universal arrisco-me a ofender os marcianos com alguma atitude que a maioria dos humanos considere aceitável... sei lá... como dizer "bom dia", comer com faca e garfo, ter uma vida pequenina, criticar sem apresentar soluções, distribuir a mesma riqueza que poderia salvar dez aldeias inteiras da fome por vinte e dois gajos que correm durante noventa minutos (com direito a intervalo!!)... e outras coisas do género.

Doutor, recuso-me a originar incidentes diplomáticos a nível intergaláctico. Seria complicad... O quê? Pode repetir a pergunta? É que não o percebi, falou tão baixo...

Oh, Doutor, quero lá saber se existem telemóveis ou internet em Marte. O objectivo da viagem é tornar-me eremita, percebe? Eremita! Não vou lá fazer turismo! Eremita é sinónimo de estar longe de tudo e perto de mim.

Sim, eu sei que terei de superar o risco de me centrar no meu umbigo a tempo inteiro, mas um dia ou outro não faz mal... Todos temos os nossos "dias umbigo", sempre que nos centramos em nós próprios e desvalorizamos o mundo porque desconfiamos dele. Pois, Doutor, são aqueles dias em que surge o eterno receio de que a entrega se transforme em desilusão e se opta pela eremitagem na esperança de limpar a mente.

É tão mais simples esquecer... mas... tratar-se-á de um acto de cobardia?

Hummm... eis um tema complicado... Uma gaivota nunca me faria tal pergunta, ou seja, para o bem da minha sanidade mental, vou optar pelas Berlengas!

Sim, Doutor, querer esquecer é um acto de cobardia, mas dessa cobardia poderá resultar um acto de coragem... esquecer o passado para conseguir recomeçar, mesmo que tal implique deixar algumas coisas para trás.

O ideal seria se não tivéssemos que deixar o que quer que fosse para trás, aprendendo com o que tivemos de bom e de mau. Como seria excelente se a entrega passasse por assumirmos a responsabilidade de tornar o mundo melhor, começando por uma evolução pessoal e uma partilha sem medos.

Que raiva, Doutor! Hoje é um daqueles dias em que me irrita profundamente viver num planeta redondo cheio de mentes quadradas. Andamos aqui a fazer o quê?!

Limitamo-nos a sobreviver, relegando os sonhos para as horas que passamos na cama. Por onde anda a vontade de ser livre? De viver plenamente? De sentir o presente? De acreditar? Será que tudo isso voou para Marte?

Bem que podiam ter voado para lá outras coisas como a apatia, o comodismo, a burocracia, os receios infundados, as dúvidas, a ignorância... Enfim, todas essas grilhetas que nos prendem ao lado mais cinzento do mundo e nos limitam os movimentos.

Somos todos gigantes, presos em jaulas para anões!

Tentamos moldar-nos ao espaço existente durante a vida inteira e raramente percebemos que a chave esteve sempre no cadeado...

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Sublime

Olá Doutor,

Nem era para vir cá hoje, mas tinha que partilhar isto consigo!

Lembra-se da minha noção de momentos perfeitos? Sim, eu sei que leu sobre o assunto no meu processo pois escrevi sobre ele durante muitos anos. No entanto, acho que nunca abordei o tema nas suas consultas.

Os momentos perfeitos são minutos plenos da nossa existência (a sós ou partilhados) em que os cinco sentidos se deslumbram com o presente no seu estado mais puro.

Por breves instantes, o nosso espaço interior é invadido de forma abrupta pela sensação de que estamos no centro do mundo e que o mundo resplandece. Vive-se o momento, contrariando a tendência de olharmos para o todo, ao mesmo tempo que (re)descobrimos cada pormenor admirável.

Gosto de pensar que cada momento perfeito é uma revelação que o mundo nos sussurra ao ouvido e hoje tive uma experiência sublime.

Imagine...

Um fim de tarde com o pôr-do-sol mais belo do mundo.

Uma brisa suave, tão quente como o laranja que só existe neste céu.

A minha canoa em pleno rio Tejo, que a certa altura se transformou num espelho.

Ai, Doutor, no meu momento perfeito, dei por mim entre as nuvens...

Sim, hoje eu consegui voar!

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Barbies

Boa tarde Doutor,

desculpe o abuso de ter entrado com o consultório vazio, mas vim cedo demais para a consulta e a Dona Deolinda disse que não havia problema.

Para ser sincera, entrei porque não conseguia ouvi-la durante muito mais tempo! Mal me apanhou na recepção e viu que o meu bronze começou a ficar às manchas - ai, doutor, isto foi provocado por pura inveja de quem não vai à praia! - recomeçou a conversa dos perigos do sol, de como uma prima dela teve que ir ao hospital e esperou três horas para ser atendida... já para não falar de quando decidiu partilhar os problemas da vizinha que se dá mal com o marido e da irmã que critica toda a gente da rua onde mora.

Olhe, preferi vir para aqui, aninhar-me no divã durante uns minutos a conversar comigo mesma. Bem... e... surgiu-me uma dúvida existencial! Sim, doutor, eu ainda não esgotei a lista de possíveis dúvidas existenciais que uma pessoa consegue aguentar. Ui, tenho quantidade suficiente para dar e vender.

Na verdade, tudo isto surgiu há uns dias, quando tomei consciência de que passei a ser a única rapariga dos dois lados da família que não está casada e sem rebentos (já tive uma planta, conta?). No momento em que deram a notícia, seguida pelas típicas palmas e expressões de alegria por se dar continuidade aos apelidos familiares nos anais da História Mundial, comecei a ponderar sobre o rumo que tenho dado à minha vida e se as minhas opções não se deveriam a uma vontade inconsciente de me afastar de compromissos sérios a nível pessoal. É que, mesmo no contexto da tão famigerada crise económica, mais facilmente se troca de emprego do que de rebentos. Doutor, os filhos são em full-time e, mal nascem, entram para os quadros da empresa-mãe!

No entanto, a grande questão surgiu poucos minutos depois, quando o devaneio sentimental passou e percebi que, ao contrário das minhas primas, nunca devo ter recebido uma "Barbie Mamã Antes dos 30", uma "Barbie Coraçõezinhos" ou uma "Barbie Doméstica"...

Eu lembro-me de ter tido uma Barbie verdadeira e não era nada como hoje em dia, do estilo "Barbie Corporatión Dermoestética"... Sim, Doutor, à excepção da Barbie, mais ninguém consegue chegar aos cinquenta anos com aquele corpinho?! Há ali muito trabalho de bisturi...

Qual seria a minha versão?

Durante alguns anos, pensei que tivesse sido a "Barbie Workaholic", que incluía canetas, papéis, um telefone fixo (na altura não existiam telemóveis!) e uma agenda profissional tão recheada que nem tempo tinha para pensar no resto da vida. Contudo, nos últimos meses, desconfiei que fosse a "Barbie Pseudo-Desempregada", cujos acessórios não faziam muito sentido. Ok, a senha para o Centro de Emprego estava enquadrada no tema, mas para quê uma bandeja, uma torradeira e um tirador de cerveja? Acho que esta versão foi um fracasso porque não trazia barril, ou seja, estava incompleta.

Na verdade, o que eu queria mesmo era pedalar no meu triciclo, com fitinhas coloridas penduradas e um mega volante, que me levava até aos confins do mundo conhecido (bem sabia eu, na altura, que existia vida para além da quinta da vizinha e do parque de campismo!). De certeza que me lembraria se tivesse tido a versão "Barbie Triciclo"...

Doutor, é que irrita tanto não saber qual a versão que me moldou a existência! E já nem falo do Ken... Também não me lembro, acha isto normal? Só sei que não era o "Ken Puto aos 40"e, muito menos, o "Ken Tacanho"... Era uma versão especial... Como é que se chamava? Ah, já sei, doutor! Era um "Ken Companheiro de Aventuras da Vida", é isso! Nem sei onde é que ele anda... tenho que ir à procura!

A infância foi recheada de descobertas maravilhosas... as pastilhas Gorila, o sumo Caprisone, os fios de pinhões na Nazaré, andar a chapinhar na água com que o meu bisavô regava a quinta (o homem desesperava quando me via com os pés nos carreirinhos... que deixavam de existir), o gosto de criar uma colecção inteira de Primavera-Verão com base numa única toalha de praia, as bombocas (preferencialmente, de morango), os banhos nos tanques (meu e da vizinhança) cheios de "verdum" e girinos... Mas, a Barbie... qual era a Barbie?

Posso garantir-lhe que não era a "Barbie Nazarena", com oferta de sete saias e uma lâmina de barbear, nem me parece que fosse a "Barbie Irmãos Grimm" porque há dias em que defendo que passamos a infância a ler histórias de encantar e o resto da vida a desencantarmo-nos. Seria a "Barbie Nómada", com oferta de uma tenda e um camelo? Nah, sei que ainda pedi essa versão aos meus pais, mas era demasiado cara.

Seria qual? Humm... Olhe, Doutor... lembrei-me!! É isso! Naquele ano, a "Barbie Ser Social" estava no auge das vendas e decidiram criar uma (sub)versão, a "Barbie Ser Humano", que não teve tanta saída porque apenas tinha como acessório um simples frasquinho cheio de vontade para não desistir dos sonhos e acreditar no impossível.

Diga, Doutor? Qual era a diferença entre as duas versões? É que a "Barbie Ser Social" trazia um sem número de outras coisas, no meio das quais o frasquinho muitas vezes se perdia... A embalagem era enorme e incluía um relógio, uma casa, um carro, um emprego e sei lá que mais!

Todas as miúdas queriam ter aquela embalagem a curto prazo e recordo-me agora que a primeira reacção ao receber a "Barbie Ser Humano" foi de desespero. O que é que se fazia apenas com aquele frasquinho? Só aquilo não chegava! Na altura, devo ter pensado "Pronto, a minha existência está perdida... vou dar uma volta no triciclo para espairecer!".

Mal sabia eu que aquele pequeno frasco continha algo tão fundamental para uma vida verdadeiramente única e valiosa... Hmmm... será que o guardei?

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Viagens inteiras, vidas plenas

Olá Doutor,

Já estou de volta! A viagem foi fantástica, adorei... e olhe só para este bronze!

A dona Deolinda viu-me na recepção e começou logo a falar de escaldões, de como o sol está muito forte, de como é perigoso viajar por causa da gripe A, riscos para aqui, riscos para acolá... enfim, o costume, mas lá acabou por concordar que tenho um belo tom dourado no corpinho.

Já agora, gostou do postal? Tive a sorte de o encontrar num quiosque minúsculo, junto à doca. A frase tinha tudo a ver com o momento. É que viajar abre-nos os horizontes. Percebemos que existe tanta coisa para além daquilo que conhecíamos... tantas vidas para além da nossa... tantos universos paralelos... tantas possibilidades... Sabe, doutor, cada viagem alimenta-me a fome de dar voltas ao mundo até perder o fôlego.

Tenho consciência de que, por mais que queiramos, é impossível fugir de algumas rotinas. Oh sim, porque apenas os eremitas são totalmente livres. Quem não é eremita por opção, tem pela frente uma luta diária, que passa por equilibrar os momentos de vida socialmente imposta com pedaços de vida plena. Quando isso acontece... bem... mesmo que a viagem seja apenas de alguns metros em frente (os metros que nos afastam das pessoas)... ah, doutor, torna-se viciante!

Por falar em viciante... trouxe algumas doses puras do tal produto de Cuba. Às escondidas, óbvio. Nem o moço percebeu. De qualquer das maneiras, o que é que ele poderia fazer? Meter-se no barco e vir cá cobrar-me? Nah, não acredito... Andar à deriva não é sinónimo de eremitagem e ele lá tem os seus compromissos sociais. De certeza que não iria deixar os clientes à espera porque chega a pensar mais neles do que nele próprio.

Esta quantidade deve durar para os próximos meses, até porque não tomo o produto todos os dias. Uma grama dá para... sei lá... duas semanas? Mais coisa, menos coisa. Além disso, existem alturas em que não quero ceder ao vício da "Eudaimonia" e do "Summum Bonum". Apesar da sensação ser magnífica, tenho dias em que tento manter a sanidade mental (sem qualquer conotação comodista), evitando tudo aquilo que possa deturpar-me os sentidos e deixando a vida fluir.

Sim, fluir simplesmente... Não quero sentir-me uma barragem, apenas mais uma, num rio específico. Quero fazer parte do rio e poder mergulhar nele sempre que me apeteça... vestida, de biquíni ou nua. Só assim a vida se vive por inteiro!

Para metades, bastam-me os preços nos saldos.

Para terços, já existem quantos bastem em Fátima.

Para quartos, só o meu, aqueles que valem a pena partilhar e os de hotel quando viajo.

Por falar em viajar... está na hora de fazer as malas e partir!

Tenho o mundo e as suas inúmeras paragens à espera, onde poderei inspirar certezas e expirar dúvidas, banhar-me de vida, ficar-lhe com os cheiros dos momentos, sentir cada segundo com a ponta dos dedos e escalar montanhas para ver (não limitar-me a olhar) a magnificência da linha do horizonte... tão ténue, tão simples, tão poderosa.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Postais de Cuba

Caro Doutor,

como deve ter reparado pelo postal, já aterrei em Cuba (gosta da imagem e da frase?). Bem, paira no ar uma força, uma energia... Devem ser os ecos da revolução e do mito Che Guevara porque se sente em qualquer uma das ruas e cidades que visitei. Sinto-me arrebatada! Aqui, qualquer pessoa acredita ser possível lutar por tudo na vida e viver plenamente. Adoro!

Além disso, é uma terra de belos acasos do destino. Numa das minhas viagens perdi o autocarro de ligação e dei por mim num sitio muito simpático, situado nem sei bem onde. Claro que não desesperei! Como não consigo perder a tradição de perder transportes, decidi aproveitar para conhecer a zona de mochila às costas. Nessa altura surgiu um desconhecido que, assim sem mais nem menos, se prontificou para tornar a minha estadia mais agradável.

Nestas situações, qualquer pessoa tem tendência a ficar desconfiada pois a vida vai diluindo a capacidade fantástica do ser humano para dar e receber sem pensar nos "e ses". A questão é que, neste caso, senti empatia mútua e genuína desde o primeiro minuto.

O moço vive aqui e, ao que parece, trocou as paredes de cimento por um barco. Bem, que liberdade. À sua maneira, é mais um revolucionário! No entanto, tenho que admitir que é um pouco estranho... tem plena noção da vida e parece-me imune à futilidade, mas no meio das suas certezas aceita o facto de andar à deriva.

Já nem falo do produto que distribui (sabe, é ilegal...). Enfim, passámos horas a falar. Pelos vistos, existem duas variantes do produto, às quais chama de "Eudaimonia" (acho que é um termo grego...) e "Summum Bonum"... Disse-lhe logo que se era coisa ilegal não queria saber mais nada do assunto porque quanto menos estivesse implicada melhor, mas a conversa lá continuou e, olhe, acabei por aceitar subir a bordo.
É aqui que lhe escrevo este postal, com as ondas a baterem no casco e a ser embalada pela água. Que sensação!

O moço garantiu-me que o produto é puro, mas descobri lotes adulterados escondidos no porão. Os efeitos secundários desses lotes são preocupantes e, ainda por cima, sentem-se por tempo indeterminado. Eu que o diga! Pois... eu... Olhe, doutor, eu sei que não o devia ter feito... foi mais forte do que eu! Espiei o moço a tomar uma dessas doses (acho que ele não me viu!) e, quando tive oportunidade, experimentei um bocadinho das duas variantes, juntas. Ai, doutor, a experiência foi tão intensa que, por momentos, me senti num universo paralelo. Imagine, se o produto adulterado gera um misto de sensações tão indescritíveis, mas ao mesmo tempo tão reais (sente-se uma certeza estranha, superior a nós mesmos e ao mundo) nem quero pensar nos efeitos da versão pura...

O pior é que não consigo tirar da cabeça este Admirável Mundo Novo (será que basta uma dose para gerar dependência?!). Agora percebo o porquê de existirem tantos compradores. Apesar de nem todos o demonstrarem, a verdade é que nenhum consegue negar a ânsia e muitos deles têm chegado aqui com a mesma história "Vá lá, orienta aí uma dose pequena. É a última, prometo!". Ah, e ainda existe outra questão estranhíssima, que surgiu depois de falar com alguns dos clientes. Disseram-me que este produto tem uma particularidade que o distingue das restantes substâncias ilícitas. Quem se mete nisto tem ressacas descomunais, mas nem sempre dá os passos necessários para conseguir a sua dose e tenta matar o vício com substâncias alternativas...

Doutor, só lhe digo, este produto conseguiria provocar uma revolução mundial!

Talvez faça parte dos efeitos secundários, mas sinto que este encontro em Cuba não foi um mero acaso. Perdi o autocarro para poder encontrar o desconhecido! Não se preocupe, eu sei, tenho que ter muito cuidado para não ficar dependente do produto, até porque desconheço as implicações do vício a longo prazo...


Por agora... já que aqui estou, quero aproveitar ao máximo. Vou mandar um belo mergulho e logo à noite enfrasco-me com rum barato. Só espero não abusar, senão arrisco-me a perder o autocarro... novamente!

Até breve,


A moça do divã

sms

"Olá doutor, bom dia! É melhor desmarcar a consulta de hoje. Peço desculpa pelo incómodo. Eu sei que o apanho de surpresa pois estava à minha espera, mas já me conhece ao ponto de perceber que nada em mim é previsível... Dá-me gozo trocar as voltas à vida :) E, sabe que mais? Vou voar até bem perto do antigo Buena Vista Social Club, yupi! Cuide do divã, ok? Beijinhos e até (muito) breve!"