domingo, 17 de outubro de 2010

Xadrez para todos!

Olá Doutor,

É verdade, já estou de volta!

Não fique preocupado. Os níveis de introspecção estão altos, mas controlados.

Marquei esta consulta devido a uma frase que escrevi em tempos, na qual afirmava que me encontro a meio de um jogo de xadrez com o destino que dura há 29 anos. Não considero tratar-se de uma batalha, mas sim de um jogo amigável, com todas as tensões que qualquer jogo comporta.

Neste momento aguardo a próxima jogada e em cada veia do meu corpo borbulha a já conhecida raiva de não conhecer a estratégia do adversário, uma sensação que se tem intensificado nos últimos tempos por sentir que somos tantos a lutar diariamente para conseguirmos ter o mínimo de paz de espírito e saborear um pedaço de felicidade.

Já nem falo de conquistas materiais quando, efectivamente, são demasiados aqueles que atribuem muita importância ao que se vê, em vez que se tentarem aprimorar por dentro. Não existe telemóvel de última geração que faça concorrência à inteligência e essa, meu caro Doutor, não se compra em lado algum...


A especulação mediática sobre a crise tem efeitos devastadores nos mais fracos, gerando uma crise ainda maior, isto é, a apatia e o desalento com que se encaram os problemas. Irrita-me tanto, Doutor, (tanto tanto tanto!) que me apetece berrar e abanar o mundo. Chego, inclusive, a ter vontade de partir ao pontapé uns quantos muros sociais, cuja estrutura se vai solidificando de forma aterradora.

Doutor, imagine-se com um casaco de Inverno em pleno dia de Verão. Custa, não custa? O calor é tanto que chega a tornar-se insuportável... Ora bem, actualmente encontramo-nos com casacos pesadíssimos e o calor está mais forte do que nunca.

Todos os dias temos consciência de como custa suportar o calor, este eterno calor que nos faz transpirar desalmadamente quando, na verdade, o problema real não se trata do calor, mas sim no facto de perdermos demasiado tempo a pensarmos no assunto, a falarmos vezes sem conta sobre ele com um nó no estômago e de atirarmos culpas uns aos outros pela situação em vez de tentarmos encontrar uma solução viável e inteligente.

E qual é a solução? Tapar o sol? Passarmos a viver em arcas frigoríficas?

Não, Doutor, a solução baseia-se em algo tão simples como... tirarmos o casaco!

Doutor, assumo que a minha loucura me ajuda nos momentos em que perante os problemas me rio da vida, mas tenho dias em que o sorriso se torna refém da realidade ao perceber que, para qualquer lado para onde me vire, me deparo com pequenos seres excepcionais a tentarem desesperadamente (re)construir vidas despedaçadas pela incerteza. Por favor, deixem-nos respirar entre as jogadas com o destino, com direito ao ritmo e à estratégia que qualquer jogo de xadrez implica.

Precisamos de vozes construtivas e atitudes visionárias, sobretudo numa fase em que se impõe a tomada de grandes decisões. Um país, como qualquer ser humano tem que se construir de dentro para fora e, tal como qualquer pessoa, tem que assumir e aprender a viver com os seus defeitos e limitações de modo a que, partindo deles, possa evoluir no sentido da perfeição (mesmo que nunca a atinja na totalidade).

Sinto que este país que se assemelha a um velho de 80 anos, com imensa vontade de viver, mas limitado pelo tempo. Esse velho poderá encostar-se à espera da morte ou então pegar na sua experiência de vida e atar o máximo de pontas que foi deixando soltas. Apenas desta forma poderá morrer descansado. Agora, Doutor, imagine como seria fabuloso se o velho atasse as pontas em dez anos e percebesse que a vida lhe dera um plafond de mais duas décadas!

Sim, Doutor, isto é possível. Aliás, tudo é possível, basta querer.


Mesmo que o velho morra aos 85 o importante é que morreu a lutar, morreu a querer evoluir. O país irá durar muito mais e não acredito que morra de velhice. Poderá, sim, morrer por excesso de Velhos do Restelo.

Sim, Doutor, ando a frequentar as reuniões dos UA - Utópicos Anónimos - mas acho que não têm surtido os efeitos desejados porque ainda acredito no mundo, em nós, na força de cada um e no esforço conjunto para contra-atacarmos as eternas jogadas do destino.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Manual de Independência para Mulheres Casmurras

Ai, Doutor, ainda bem que consegui falar consigo sem hora marcada!

Posso esticar-me no divã?

Obrigada.

Uiiiii, sabe sempre tão bem... Acho que conseguiria estar aqui mais de cinco minutos em silêncio, a sério!

Bem, mas não será hoje porque tenho que baixar os níveis de introspecção. Talvez um dia me estique aqui caladinha, por agora não consigo.

Diga Doutor? Ah, eu com as mãos a tremer? Tenho, sim senhor. Nem sabe as provas com que uma mulher a viver sozinha se depara. São muitas e nem todas tendencialmente corriqueiras, acredite.

Por exemplo, porque acha que tenho as mãos e os braços a tremer desta maneira?

Não, doutor, não se trata de uma questão nervosa.
Não, também não me cruzei com alguém especial.
Nem à terceira tentativa? Garanto-lhe que não me deixaram um ramo de flores à porta de casa.
Não, nada disso, não me contaram qualquer cusquice inesperada no trabalho.
Népia, porque haveria eu de estar à beira de um ataque de nervos só porque parti uma unha?

Percebe agora? As sugestões que deu têm um grau de futilidade que assusta. Quer tentar mais uma vez? Vá lá, só tentando é que se consegue!

Acha mesmo? Ufa, também não. Garanto-lhe que não surgiu um PEC4... Até ver...

Enfim, se estou a tremer trata-se simplesmente de uma reacção dos músculos ao esforço que tive de fazer porque decidi ir comprar gás e declinar a gentil oferta do dono do estabelecimento para me transportar a botija, ou seja, aqui a menina carregou-a sozinha por uma questão de orgulho.

Oh Doutor, juro-lhe que não se tratava das leves e, muito menos, que eu vestia calções justos ou levava a camisa aberta...

Aqui para nós, acho que ganhei o respeito dos homens da terra! Mal sabem eles que demorei um quarto de hora a descobrir como raio se tira aquela pecinha cujo nome não me recordo e que faz "clic" na botija para que o gás fique pronto a ser utilizado...

Esta coisa de nos assumirmos perante o mundo como pessoas independentes tem muito que se lhe diga, sobretudo quando nos aproximamos a passos largos da quarta década de vida... Sim, doutor, a quarta década. Se do nascimento aos dez anos conta uma, dos dez aos vinte conta duas e dos vinte aos trinta conta três, faça as contas. O peso da idade é ainda maior do que parece!

Em primeiro lugar, nunca é fácil conviver com o drama dos elementos mais velhos da família "Ai filha, olha que se começa a fazer tarde. Assim ficas com os restos... Põe os olhos na tua prima que já arranjou homem e tem filhos!".

Doutor, eu sei que devemos respeitar quem já possui uma extensa experiência de vida, mas garanto-lhe que não é fácil manter o sorriso e a boa educação enquanto lhes explico que não existe uma árvore chamada "Boa Partideira", cuja semente brotaria da terra linda e viçosa, com cachos de "bons partidos". Sim, doutor, os homens perfeitos que a família tanto deseja para nós, meninas solteiríssimas, alvos de case studies simplesmente porque acreditamos que tudo tem um tempo certo para acontecer e, simplesmente, não desesperamos.

Cheguei, inclusive, a optar pelo tratamento de choque e oferecer no Natal o cd da ClaudIsabel com o hit "Preciso de um Herói", mas nem assim. "Homens a sério isso todas nós sabemos Cada vez há menos, cada vez há menos! Mas homens tolos, mentirosos e banais Cada vez há mais, cada vez há mais!".

Bah, não faça essa cara, doutor. Eu sei que soa a hino feminista ou desabafo de mulheres que atribuem demasiado valor a gajos que nunca as fizeram felizes, mas eu tinha que dissuadi-las, entende? Ouvir a mesma frase vezes sem conta desgasta o cérebro, chiça!

Em segundo lugar, há que saber lidar com a curiosidade de muitos daqueles que nos rodeiam. Na verdade, poucos têm a coragem de nos perguntar directamente o que lhes vai na alma "Será que se tornou celibatária ou, pelo contrário, nem deixa que a cama arrefeça de um para lá meter outro?".

Neste caso nem é muito difícil porque basta manter o suspense. Ninguém sabe se e com quem dormimos e, além disso, a tendência não é para acharem que o brilho da pele e o sorriso matinal são consequência de uma bela noite bem dormida ou simplesmente porque se acordou a amar o mundo sem saber porquê.

Em terceiro lugar, o famoso número ímpar nas jantaradas e nas férias de casais. Ora pois bem, doutor, considero esta questão especialmente deliciosa porque os amigos nunca perdem a expectativa de serem brindados pela pergunta "posso levar alguém?", ou seja, não se corre o risco de cair na rotina. Isto tudo para não falar da pergunta cúmplice e recorrente "Então... e novidades?". Bem, umas vezes tem-se e conta-se, outras tem-se e não se conta e ainda existem as ocasiões em que pura e simplesmente não se conta porque não existem.

Em quarto lugar surge a parte deprimente. Sim, quando as gajas são puras nos genes e odeiam todas as outras, especialmente as solteiras com novidades para partilhar. Essas são aquelas que arranjaram os seus "mais que tudo" na adolescência, casaram ou não, tiveram filhos e nunca se descobriram a si próprias enquanto mulheres, encarando os respectivos companheiros como caixas de ferramentas. Doutor, não entendo. A minha cara metade não pode limitar-se a umas quantas técnicas de bricolage..."Ui, ele é tão querido quando arranja a canalização e troca as lâmpadas de casa!" ou "Sinto cá uns calores quando ele arranja a máquina de lavar roupa!".

Poderia passar horas a contar os milhares de situações com as quais uma pré-trintona solteira a viver sozinha se depara, mas tenho que ir até ao meu "lar doce lar" porque ninguém faz o jantar por mim. As únicas vezes em que algo parecido acontece é quando coloco uma pizza no forno!

Considero que o maior trunfo nesta fase da vida é ter consciência da piada de cada situação e não perder tempo com ninharias. Os outros, aqueles que importam, conhecem e respeitam o todo que eu sou da mesma maneira como eu adoro tudo o que eles me dão através dos seus sorrisos genuínos.


Além disso, sinto que que os piores receios da família se dissiparão ("Ufa, não ficou encalhada!"), que encontrarei o meu número par ("Eh lá, trouxe alguém ao jantar!") e que as "donas de casa" irão ficar mais descansadas ("Olha, olha, será desta que se acalma?").

Apenas não sei para quando, mas também não perco tempo em estatísticas ou análises de probabilidades.
A vida brinda-nos de vez em quando e nada mais interessa.

Sim, doutor, porque a solidão tem o seu lado positivo e ensinou-me que sentir que estou viva por dentro é uma bênção que se tornará maior no dia em que partilhar este sentimento com quem vibra de igual modo com o mundo.

Até lá, continuarei a viver sem deixar que ânsia da procura turve a forma como encaro a vida e a lutar para ganhar o respeito dos homens da terra (acho que vou construir um barbecue no pátio!).

domingo, 10 de outubro de 2010

A geração das bicicletas

Olá Doutor,

Está tudo bem consigo?

Cheguei há horas de um casamento com amigos da minha geração e não me sai da cabeça como é incrível que debaixo dos trapitos da moda, acessórios, brilhos e experiências de vida tenha sido possível (re)descobrir a essência de cada um, bem como os traços de personalidade que nos uniram, na maioria dos casos, há mais de uma década.

Diz-se por aí que o tempo é o senhor do mundo, mas a partir do momento em que percebi que a genuinidade dos momentos partilhados superou os anos que passaram, quase posso afirmar que durante 26h30 fomos os senhores do tempo.

Sabe, não deixo de me surpreender pela forma como a empatia se gera de forma inesperada com todos aqueles com quem nos vamos cruzando ao longo da vida. Se algumas pessoas passam por nós com passo apressado e olhos no chão ou no infinito, outras param e metem conversa e é desta forma, tão pura e simples, que se constroem mundos. Aliás, Doutor, é assim que se constroem os castelos e se transformam sonhos em realidade.

Tive a prova de que nem todos os miúdos atrapalhados da geração de finais de setenta e inícios de oitenta (geração em que uns tinham mais mais borbulhas e outros mais inteligência) não se deixam limitar pelo contexto socioeconómico em que tentam recomeçar a vida vezes sem conta. Cada um, à sua maneira, vai transformando o mundo numa bolinha onde faz sentido viver e lutar.

São estes os putos das pastilhas Gorila e cujos sentidos ficaram marcados pelo "Feno de Portugaaaal, aroma da Naturezaaaaaaa" a quem, hoje em dia, não é permitido pensar em médio ou longo prazo.

Sei que muitos esqueceram a pureza desses anos e acabaram por se acomodar às vontades e ideais de terceiros, entregando-se a lutas sem sentido, mas outros mantêm o sorriso rasgado com que recebiam um Epá e hoje contam uma bela história de embalar aos respectivos rebentos intitulada "A Geração das Bicicletas".

Se o Doutor quiser, eu posso contar-lhe a história. A sério? Quer mesmo ouvi-la? Ok, então eu conto. Tente não adormecer.

A história começa como todas as histórias de encantar e termina como deveriam terminar todas as histórias de vida. Aqui vai:

"Era uma vez uma geração de meninos a quem foram oferecidas bicicletas sem rodas. Esses meninos ficaram muito tristes porque queriam conquistar o mundo a pedalar e houve mesmo quem fizesse birras gigantescas em vão.

Durante anos, foram muitos os que encostaram as bicicletas num canto, tapadas por plásticos velhos e poeirentos e delas se esqueceram. A vontade de pedalar foi-se dissipando e, em muitos casos, chegou mesmo a desaparecer, fazendo com que as bicicletas velhas fossem despejadas nuns depósitos especialmente criados para o efeito chamados de Sonhos Irrealizáveis.

Ora, mas nem todos se desfizeram das prendas que tinham recebido e alguns preservaram as bicicletas, tratando delas regularmente. Eram poucos, é certo, mas existiam e não tinham problemas de falar da vontade que tinham em obter as tão desejadas rodas para assim aprenderem a andar a toda a velocidade por todo o lado.

Com efeito, houve mesmo quem chegasse a conseguir as rodas. Primeiro uma e depois outra, em alguns casos com anos de intervalo e grande esforço. Esses meninos tinham realizado o sonho por persistência ou orgulho e ostentavam a sua conquista nas ruas, para contentamento e inveja de muitos.

No entanto, os problemas não estavam totalmente solucionados. Ainda faltava aprender a pedalar...

Para alguns meninos da geração das bicicletas sem rodas, as primeiras quedas foram suficientes para que desistissem. Nem todos aguentaram os joelhos esfolados ou os arranhões nos braços e depressa surgiria um novo tipo de depósitos aos quais se atribuiu o nome de Sonhos Adiados.

Ao contrário do que acontecera inicialmente, nestes depósitos as bicicletas não foram amontoadas, mas sim preservadas, sem que ninguém percebesse muito bem porquê. Chegaram, inclusive, a fazer-se manifestações com o objectivo de se destruírem todos esses símbolos da infância que continuavam brilhantes e aos quais nenhuma alminha dava uso.

Os anos foram passando, uma década deu lugar a outra e ambos os depósitos iam ganhando proporções preocupantes até que um dia, numa data de que ninguém se lembra exactamente, começaram a surgir meninos crescidos com crianças pelo braço às quais eram mostradas e oferecidas as bicicletas dos Sonhos Adiados.

Esses meninos crescidos eram todos aqueles que, apesar da dificuldade inicial, tinham aprendido a andar de bicicleta. "Não" diziam eles aos meninos mais pequeninos "Não foi fácil dominar a técnica para pedalar na perfeição. Aliás, ainda hoje é possível cair, mas se tal acontecer depressa se salta do chão, sacode a terra da roupa e pega na bicicleta para voltar a pedalar.".

Foi assim que as bicicletas dos Sonhos Adiados se tornaram nas bicicletas dos Sonhos Partilhados."

Sabe, Doutor, tenho consciência de que a minha geração, como todas as outras, não é perfeita. Todavia, os encontros e reencontros deste fim-de-semana fazem-me crer que, apesar do que que passa no planeta, muitos meninos crescidos partilharão sonhos com a geração que ainda está a ganhar forma.

Além disso, ainda acredito no meu sonho de menina, no qual os Sonhos Irrealizáveis e os Sonhos Adiados se transformarão em meras memórias da geração que aprendeu a pedalar para conquistar o mundo.

(link com banda sonora para a viagem!)