quinta-feira, 5 de novembro de 2009

A tontinha lá da aldeia

Posso entrar Doutor?

Ah, estou a ver que fez algumas alterações no consultório. Bela escolha de cores, fazem lembrar um quadro do Paul Klee. Manteve o divã e instalou um sistema de música ambiente. Isto é o quê? Astor Piazzolla? Ui, gosto... e muito!

Se adormecer durante a consulta, acorde-me. Sabe, é que hoje voltei a dormir mal. Fechei os olhos, sim, mas o cérebro não desligou e acordei com a sensação de que passei a noite inteira a fazer cálculos dignos de um Einstein ou a tentar interpretar de forma coerente o programa do Governo e as reacções da oposição...

Bem, mas voltando aos meus sonhos... tenho-me deparado com um mundo compacto e intensamente populoso. Esta noite não foi excepção. Partilhei as horas com inúmeras caras conhecidas e desconhecidas, em locais tão díspares como uma casa no centro de um lago, um comboio suburbano, uma curva apertada que conheço desde a infância e as ruas de uma qualquer vila histórica, ladeadas por muralhas. Não me lembro particularmente do enredo, mas sei que a lista de adereços incluía uma barriga de grávida, um livro da Taschen, um carro branco que deixaram ir abaixo...

Muito bem, Doutor! Depois do Astor Piazzolla é fantástico ouvir a Bebel Gilberto...


Enfim, tenho tido sonhos surrealistas e ao acordar deparo-me com uma realidade fauvista! Além disso, não consigo deixar de fazer comparações entre o que fui, o que não fui, o que sou, o que não sou, o que o mundo é e o que poderia ser... Doutor, não existe alminha que resista a tamanha confusão! A minha tia Pallete que nem desconfie disto senão mete-se na "carreira" e tenho que a aturar...


Apesar de tudo, ainda não enlouqueci... acho eu...


Sabe, é que não é saudável ser-se louco no campo. As pessoas falam muito e, ao contrário da cidade, ficam especadas a comentar como aquela família não teve sorte, atribuindo à loucura causas pouco nobres.

Já lá vai a altura em que um louco era considerado um sábio incompreendido. Hoje em dia, um louco não é respeitado e nem todos os seres com uma existência alienada conseguem ganhar o estatuto de "tontinho da aldeia". O "tontinho da aldeia" é uma figura pública tão amada e incompreendida como o presidente da câmara. Em suma, é mais um funcionário da autarquia, uma espécie de animador sociocultural a tempo inteiro.


A luta pelo estatuto de "tontinho da aldeia" implica grande esforço e dedicação! Até aqui se sentem os efeitos da crise e eu ainda tenho um longo caminho a percorrer até ser "contratada". Sei que, inicialmente, iria deparar-me com alguns comentários impopulares, como - "Coitada daquela família... A Dona Cremilde contou à Menina Julieta, durante a missa, que a moça ficou assim por causa dos ares de Lisboa. Cá para mim, foram drogas que lhe deram por lá... As gentes da televisão são assim!".

Doutor, será que a minha família aguentaria este tipo de comentários? Talvez seja melhor continuar na dúvida se estou louca. Quanto mais não seja, lanço o boato de que estou com uma depressão.

O problema é que se considera irracional ganhar uma depressão devido à frustração profissional. Normalmente, ganham-se depressões devido a causas emocionais, ou seja, "porque o marido a trocou por outra", "porque é uma encalhada" ou então porque faz parte da família do tontinho da aldeia...

Hum, o papel de encalhada até era capaz de resultar. Já consigo imaginar o falatório nos bancos de jardim - "O meu Tony estava no café e ouviu o Zé do talho comentar com o padeiro que a moça se envolvia com mulheres lá na cidade. É muito estranho ter quase trinta anos e andar por aí desamparada! Ainda não casou, nem teve filhos nos tempos da adolescência... é estranho ou não é? Coitada daquela família! Nem um tontinho, nem um casamento infeliz..."
.

Pois... ainda são muitos os sítios onde apenas se aceita que alguém viva sozinho a partir do momento em que já se tenha tido, pelo menos, três filhos e um casamento infeliz. De outra forma, como pode uma pessoa ter uma vida independente sem ganhar uma depressão?

A cusquice continuaria acesa no salão da cabeleireira - "Só falta dizer que existem pessoas que estão sozinhas porque são teimosas ao ponto de ainda acreditarem que irão encontrar a pessoa ideal para partilharem a vida de forma inteligente, com um misto de maturidade e puerilidade... Bah, aguentar o mundo em dois ombros... Porque não distribuí-lo por quatro, mesmo que os outros dois não sejam os desejados? Essas relações nem existem nas novelas... Era só o que faltava!! Isso é coisa de loucos... ou então de "mulheres-homem"!!
".

Oh Doutor, a minha família também não merece este tipo de suspeitas, simplesmente porque sou heterossexual. Se não fosse, bem queria eu saber que falassem do meu lesbianismo, mas assim vou poupar a minha avó, que não resistiria a tamanho golpe na "moral" que é defendida em prol do "bem comum"... de alguns...

Sim, de alguns... Os verdadeiros valores não se impõem, nem se publicitam. Encaixam e limam a nossa natureza animal de forma natural. Sendo a felicidade um fim em si mesmo, não me interessam quais os meios utilizados pelos outros para a atingirem, desde que prevaleça o respeito mútuo... e o respeito passa por ficarmos felizes com a felicidade dos que nos rodeiam.

Será assim tão difícil perceber isto?

Será que, ao pensar assim, conseguirei o tão almejado estatuto?


Pensando melhor, talvez tenha fortes hipóteses de me tornar na tontinha da aldeia, ganhando algum respeito nas conversas de café e de sacristia e fazendo concorrência aos temas apresentados nos programas matinais da tv...

"Eu não sou de lançar boatos, mas contaram-me que a moça acredita na felicidade e que, às vezes, a vêem a escrever sobre esperança e a força que os seres humanos têm dentro de si para mudarem o mundo."

"Ai, não me diga?! Até que é boa rapariga, mas aquilo só podem ser efeitos da poluição de Lisboa ou da falta de um homem que lhe meta a mão em cima de vez em quando... Coitada!"

Acredito que a família conseguirá aguentar tamanha exposição na praça pública. Sabe porquê, Doutor? Habituei-os aos meus lapsos de sanidade mental desde tenra idade e sempre lhes disse que iria ser famosa...

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

(Ainda) não sei...

Olá Doutor,

Pois, tem razão em estar com essa cara... Tenho faltado às consultas... A Dona Deolinda já nem estranhava quando eu ligava a desmarcar, apenas perguntava se eu estava bem...

Se eu estava bem... que raio de pergunta. O que é "estar bem"? Bastará comer sobremesa ao almoço? Ou o "estar bem" pressupõe algo muito mais profundo? Sei lá... estar viva, sorrir regularmente, ser mimada pelo mundo, seguir em frente?

Sinceramente, não sei responder à questão. À Dona Deolinda apenas respondia que sim e é incrível como uma resposta tão simples consegue enganar tanta gente, incluindo nós mesmos.

Não sei se estou bem, sinto-me num labirinto de cor verde esperança, salpicado por outras cores cujos nomes desconheço. Apesar de saber que o labirinto tem saída, hoje prefiro sentar-me a olhar para além das paredes, directamente para cima, directamente para o céu. Ah, como seria bom se tivesse asas e usasse um dos últimos fôlegos para levantar voo e sair daqui, rumo ao azul, sobrevoando os muros do labirinto e rindo com desdém de todos os momentos que ali passei.

Por vezes, sinto que me chamam do lado de lá dos muros. Serão vozes que estão para além do labirinto ou outros que, tal como eu, deambulam por aí? Doutor, não sei... cruzei-me com algumas pessoas, mas trocam-se poucas palavras quando o tema de conversa é o mesmo. Aqui não se pergunta se o outro está bem...

A saída está perto, mas vou dormir mais um pouco neste recanto. Posso? É-me permitido desistir durante um dia, sem máscaras nem outras tretas que fui deixando pelo caminho para que a caminhada se tornasse mais leve? Preciso de me sentir humana, de me inspirar nos sonhos, dormir sobre os milhentos assuntos do mundo e olhar-me nos olhos com um brilho renovado para voltar às batalhas. Sim, Doutor, não existe melhor arma do que acreditarmos em nós mesmos e, tal como todas as armas, também essa necessita de manutenção...

Sem indicações nem mapa, existe apenas a certeza de que brevemente conquistarei a minha liberdade e o meu bem estar.

Quando? Doutor, não sei... Até lá, está autorizado a dar-me um par de estalos de cada vez que me apeteça desistir. Pode ser? Esteja descansado, não farei queixa de si. Sabe porquê? Porque é tão culpado aquele que desiste, como os outros que não o ajudam a abrir os olhos e a enfrentar a realidade (mesmo que essa realidade seja o próprio reflexo).

Doutor... que olhar é ess... Au!! O estalo doeu! Pronto, ok, eu não desisto... por hoje... Dout... Au!!