quarta-feira, 13 de julho de 2011

Até logo...

Olá Doutor,

Sim, aqui estou eu de regresso ao divã.

Tem apetecido passar por cá. Não tem apetecido ficar.

Cheguei a entrar uma ou duas vezes no prédio, mas a vontade dissipou-se a cada degrau da entrada e depressa dava por mim a sair e a seguir a minha vida.

Ao longo dos meses comecei a questionar-me sobre o que me traria ao cimo das escadas. Uma manifestação com trezentas mil pessoas não me convenceu. Os trinta anos não chegaram. A instabilidade e a vontade de fazer as malas não foram suficientes. A descoberta de sensações deliciosas não bastou.

Trouxe-me a questão mais básica de todas, aquela que provoca arrepios e ainda surpreende, apesar de tão óbvia.

Trouxe-me a única certeza que temos de cada vez que respiramos e tantas vezes esquecemos de tal forma se afigura banal ao longo da existência.

Trouxe-me o tema de ensaios infinitos e milhentas teorias.

Sim, Doutor, falo da morte.

O prazo de validade fica estabelecido a partir do momento em que somos gerados, exactamente na mesma altura em que o protocolo da vida estabelece a lista de precedências. Não existe frase mais descritiva para este facto do que aquela que ouvi há dias a meio de uma conversa sobre a perda de entes queridos "sim, sim, também está convidada".

Fora do contexto poderá parecer-lhe crua, mas essa é a realidade. Todos recebemos o convite no primeiro dia do resto da nossa vida (com direito a dress code) e é impossível recusá-lo. "Ah, e tal, já tenho planos nessa data... podemos adiar para a próxima semana?". Nada disso, a data foi marcada com a seiva do tempo e não há evolução científica que consiga removê-la.

A lógica da coisa é compreensível a qualquer Q.I.. No entanto, quando a perda se torna iminente as teorias caem por terra, a lista de precedências torna-se difusa e surge a ânsia de acreditar em milagres, algo quase impossível para um agnóstico. Tenta-se racionalizar a vida, imortalizar memórias, minimizar o lado físico, pegar em pequenos nadas que agora parecem tudos, limpar lágrimas em segredo, mostrar garra para garantir que quem fica prolongará o lado bom.

E depois... depois chega a força da expressão "para sempre", chega a azia do vazio nos espaços comuns, chega a certeza da certeza e do tempo que desperdiçamos a lutar por pseudo-conquistas imortais.

Mas que raio de conquistas, Doutor? Um emprego? Um carro? Superar a crise que é a plena confirmação da irracionalidade do ser humano? Dinheiro? Mesmo em tempo de crise, o pouco de material que existir será sempre em maior número do que as pessoas com quem partilhamos Vida.

Tenho a nítida sensação de que a minha geração viverá pouco. Muitos de nós ficarão pelo caminho devido às prioridades que estabelecemos. Sim, parece que aguentamos só que "elas não matam, mas moem"... E para quê? Sim, para quê? Os mais românticos diriam "para partilhar".

Bah, que bela treta, quantas minudências! A única coisa que vale a pena ser partilhada é a felicidade.

Diga Doutor? Pergunta-me se o dinheiro traz felicidade?

Bem, o dinheiro traz uma felicidade de marca branca, "made in China", low cost... Algo completamente ridículo se pensarmos que a verdadeira felicidade é o maior luxo da vida e que, curiosamente, não se paga.

A felicidade é uma fonte de energia renovável de cada vez que partilhamos momentos puros e espontâneos. De cada vez que se geram sorrisos. É algo tão doce e imenso como a marmelada que a minha avó me colocava no pão durante a infância e cuja metade deitava fora de forma disfarçada pela intensidade do sabor.

Doutor, a amargura que a ideia da morte provoca nunca será superior à doçura das sandes de felicidade que tenho recebido ao longo da vida e a marmelada extra é a melhor prova de que tamanha quantidade só faz sentido porque deve ser partilhada.

Por isso, perante a data marcada no convite de alguém, ainda vou a tempo de dizer "Até logo, vou guardar metade desta sandes de felicidade que tu me deste no passado para partilhar com aqueles que vierem no futuro. Porquê? Porque cada um faz as sandes com um toque especial e as tuas... bem... as tuas são únicas".