sábado, 27 de novembro de 2010

Reset

Olá Doutor,

Eis que chega um fim-de-semana com retoques natalícios e o país depressa esquece a crise. Vem aí mais um ano e o povo vive feliz com os seus subsídios de Natal. É altura para comprar os electrodomésticos com que se sonha há mais de trezentos dias, yupiiiii!

Sinceramente, já não me consigo espantar com o boom consumista que caracteriza esta época e, sabe uma coisa, fazem todos muito bem. Se têm dinheiro gastem-no antes que o Estado (ou o FMI...) se lembre de criar novas taxas num futuro próximo. Gastem tudinho! O mundo há-de sobreviver...

Que se lixem as paranóias mundiais, o cheiro nauseabundo da ganância, as trinta mil teorias sobre os problemas que hoje enfrentamos. Não passaremos de ratos de biblioteca até alguém se chegar à frente e passar à prática.

Que venham as conversas filosóficas de café acompanhadas por minis e tremoços.
Que venham as posições extremistas daqueles que nada fazem e muito falam.
Que venham as notícias negativas dos telejornais, como se a vida não tivesse qualquer traço positivo.
Que venham as pessoas cheias de vontade, apenas superada pelo medo.
Que venham mais senhores engravatados, entre um coffee break e um cocktail, falar sobre o que é ser pobre.
Que o mundo continue a ser governado por minorias apoiadas pela maioria silenciosa.

E a nível pessoal?

Que venham as convenções e os valores manipulados por uma falsa estabilidade, em detrimento da verdadeira felicidade.
Que venham as birras pueris dos adultos que preparam as próximas gerações.
Que venham mais carros xpto e T6, pagos à custa de se deixar de viver, conhecer o mundo, estar com amigos, dar jantares em casa com entradas e bom vinho.
Que venham as lamúrias dos que aguentam relações disformes porque têm medo de enfrentar os seus fantasmas sozinhos.
Que venham os que nunca se esforçaram por ter na cara metade um companheiro cúmplice de aventuras na conquista do mundo, centímetro a centímetro.
Que venha o medo de ficar só e não ter netos para contar histórias.

Enfim, que venha tudo e mais alguma coisa. São todas essas baboseiras que tornam o mundo divertido.

Oh, sim, o mundo poderia ser muito mais surpreendente se todos optássemos por lutar a sério pela felicidade interior e exterior sem contornos rococós, mas o que quer que lhe diga? O Natal chegou e eu decidi fazer reset!

Deixei de me chatear e vou seguir caminho com destino a uma vida simplesmente plena. Oh, sim, garanto-lhe que é desta! A vida flui sempre e os sorrisos, tal como as lágrimas, estão garantidos no futuro. Não me quero perder por atalhos superficiais, quero sentir que existo e faço coisas úteis a mim mesma e aos que me rodeiam. Quero sentir-me viva, independentemente do contexto universal. Nada é definitivo, mas podemos esforçar-nos por prolongar tudo aquilo que achamos valer a pena.

Não, Doutor, comprar electrodomésticos não está nos meus planos. Para já, o que tenho é suficiente e até agora não me fez falta. A nível pessoal... bem... os sonhos continuam bem acordados e brevemente terei o encontro anual com aquele senhor barbudo que se veste de vermelho e tem como animais de estimação duendes e renas.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

A minha sala...

Boa noite Doutor,

Desculpe o avançado da hora, mas a porta estava aberta e decidi entrar. Como seria de esperar, a Dona Deolinda já não está na recepção e quase consigo imaginá-la, neste momento, de rolos na cabeça a tentar ver uma das mil "novelas da noite" com os netos a correrem pela casa e a choramingarem com a birra do sono.

E você? Não devia estar em casa a relaxar? Enfim, esta noite o consultório juntou-nos, dois solitários a tentarmos contrariar a teoria de que o fim de dia apenas faz sentido com companhia.

Só não lhe recomendo a minha receita ideal para suprimir a "solidão social" porque cada pessoa é diferente, mas acredite que é fantástica a sensação de entrar no refúgio do lar, descalçar os sapatos, meter uma musiquinha com qualidade, encher um copo de vinho e deixar o corpo encaixar perfeitamente no sofá. Esta é, sem dúvida, uma das melhores formas para terminar o dia. Imaginei-a vezes sem conta e há muito que parte do sonho passou a realidade.

Quer dizer, ainda não conquistei a imagem idealizada na minha mente, na qual os sapatos seriam de salto alto, o dia teria implicado uma grande conquista a nível profissional e, vá-se lá saber porquê, a sala seria composta por um ambiente quente, apontamentos em creme e um grande sofá castanho com almofadas.

A verdade é que nunca tive uma sala assim e, sinceramente, não seria o tipo de decoração em que me apetecesse investir. No entanto, é uma imagem que não me sai da cabeça, apesar de já ter conquistado o momento de descalçar os sapatos altos à entrada do prédio depois de um dia de conquistas profissionais e me ter esticado a beber uma mini.

Sim, Doutor, admito, descalcei-me à entrada do prédio... não aguentava mais... e senti-me infantilmente realizada por conseguir chegar à porta de casa sem ser apanhada pelos vizinhos. Adoro a ideia de andar com os sapatos altos pela mão ao final do dia... sei lá... podia dar-me para coisas piores!

O âmago da questão está nas imagens que cada um tem guardadas na mente. Sei de amigas que desde cedo acalentaram o desejo de chegarem a casa e terem uma criança a correr-lhes para os braços, outras que idealizaram serem surpreendidas por um jantar romântico preparado pelos seus "mais que tudo".

Não quer dizer que não tenha já pensado em cenários similares, mas a tal sala não sofreu alterações com o passar dos anos, que apenas lhe juntaram uma continuação: a chegada de alguém a meio da terceira música. Alguém que depressa se aninharia ao meu lado no fantástico sofá castanho com vontade de partilhar o vinho e o final de dia. Alguém com novidades, questões retóricas, revoltas com o mundo, tentativas de solucionar o quotidiano alheio e um olhar sorridente.

Sabe, é estranho ter uma imagem tão definida na mente desde que me conheço enquanto adulta. É uma certeza que me tem acompanhado e não se desvanece.

No outro dia liguei à tia Pallete para lhe colocar esta questão. Bem, estivemos tempos infinitos ao telefone. Ela está bem, encontra-se a passar uma fase muito curiosa porque desconfia que está apaixonada por um outsider com quem se cruzou por acaso, mas algo dentro dela não lhe permite deixar-se ir por devaneios.

Não a notei diferente ou estupidificada, como tantas vezes acontece a algumas pessoas quando se afundam no marasmo das relações. Pelo contrário, considero-a mais lúcida do que nunca e nem me desligou o telefone quando lhe disse para deambular um pouco pelo novo sentimento que lhe preenche a alma, consciente de que a necessidade de ter os pés assentes na terra muitas vezes resulta em ter a cabeça lá metida, alheia ao lado da vida que não conseguimos agarrar com as mãos, mas que se revela ao corpo tão importante como o oxigénio.

Bem, voltemos à questão da sala idealizada, até porque se ela desconfia que lhe contei isto estou feita. Como estava a dizer, perguntei-lhe o que achava sobre a imagem mental que me persegue e a tia conseguiu voltar a surpreender-me.

"Filha, tu queres mesmo uma sala assim?" Então porque não lutas para a ter?"

Respondi-lhe que neste momento me sinto satisfeita com o meu estúdio recheado de tons verdes e que, ultimamente, não me tenho permitido sonhar muito com o futuro porque o mundo me exige ser realista todos os dias.

"Oh sim, a crise, a desculpa ideal para a apatia. Não me digas que te deixas levar pela especulação mediática! O mundo está mal, mas apenas piorará se as pessoas desisitirem perante as primeiras notícias negativas. Achas que é a primeira vez que tal acontece? Nada disso, o mundo faz-se de fases cíclicas. Se hoje estamos numa fase menos boa, apenas temos que querer ultrapassá-la. Nada é mais forte do que a força de vontade!"

"E o que me tens a dizer sobre a tua vontade? Queres mesmo essa sala? Queres mesmo ter alguém que te acompanhe na vontade de mudar o mundo ao final do dia?" Perguntou ela, com aquela voz assertiva que me faz tremer por saber que daí resultará um monólogo sem direito a intervenções...

"Lembras-te de objectivos que tenhas estabelecido ao longo da vida e que tenhas conquistado?"

Eu lembrava-me. Sim, Doutor, a nível profissional estabeleci limites que consegui conquistar, apesar de se terem revelado efémeros. Comecei a enumerar-lhe um ou outro e, obviamente, fui interrompida...

"Não entendo esta geração, a sério. Há um século atrás era muito mais complicado comunicar. Não existiam essas coisas das redes sociais e os telemóveis. Hoje vocês têm tanta forma de falarem entre si, de transmitirem mensagens de esperança, de se acompanharem ao longo da vida e sinto que a solidão está mais forte do que nunca. É quase como se, no meio de tantas possibilidades, vocês se perdessem. Chega a ser vergonhoso, filha.".

Não estava a perceber muito bem onde queria ela chegar com aquela ideia, mas a tia Pallete depressa continuou o seu raciocínio.

"Hoje em dia, as pessoas perdem-se a pensar naquilo que não têm em vez de darem valor ao que já conquistaram. Tens-te esforçado para conhecer mais um pouco do mundo todos os dias ou passas as horas de cabeça baixa a olhar para o umbigo?"

"O que quero dizer-te é que não te podes perder na imensidão das possibilidades e dos sonhos. A vida será o que tu quiseres, mesmo que a tua vontade passe por cenários simples. Não tens que recear parecer menor do que aqueles que vivem no meio do glamour porque grande é a felicidade e essa, minha cara sobrinha, acontece nos cenários mais inesperados.".

"Aquela sala é a tua vida, queres que seja acolhedora e sem grandes confusões, com espaço para momentos a sós e partilhados. Conseguirás conquistá-la no dia em que te concentrares no que queres e lutares por isso. Não adies a vida. Vive com vontade de seguir em frente, mantendo-te fiel aos valores que defendes e às verdades em que acreditas. E, num qualquer final de dia, darás por ti aninhada no sofá castanho com a pessoa que idealizou tanto aquela sala quanto tu.".

Bem, Doutor, depois disto tudo acho que apenas nos resta ir para casa. Não se preocupe, estar sozinho não é crime, trata-se apenas de uma fase positiva e passageira... Vamos?

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Não cedo!!

Olá Doutor,

Como tem passado?

Aqui estou eu, novamente, para mais uma consulta. Acho que no dia em que deixar de frequentar o consultório apresentar-lhe-ei uma proposta para comprar o divã fantástico onde já me estiquei mais de cinquenta vezes.

Sim, cinquenta vezes, quem diria... Três anos e tanta coisa aconteceu na minha vida.

No outro dia decidi ler alguns dos relatórios das consultas e cheguei à conclusão de que o meu mundo sofreu alterações num grau que muita gente apenas atinge em décadas.

É verdade, na maioria das vezes fui eu quem optou por fazer as malas e partir. É sempre mais fácil do que ter as malas feitas e ficar à espera. Recuso-me a ceder perante o mundo, mas continuo à espera das surpresas do destino.

As eternas surpresas... Bela forma de continuar a ter esperança no futuro... Umas foram mais importantes do que outras e nem todas acompanhadas de sorrisos. No entanto, três anos depois, continuo a defender as mesmas causas apesar de todas as mudanças que o mundo gerou em mim.

Sabe, Doutor, sinto que chegou a altura de deixar de falar de surpresas. Quero ter razões para aparecer por aqui e contar-lhe as minhas descobertas.

Nada disso, não são a mesma coisa. As surpresas implicam incerteza. As descobertas implicam conquistas... e não é que conquistei uma imensidão de boas memórias com o passar da vida?

Ontem juntei-lhe mais uma, a minha avó a soprar as velas do 76º aniversário. Enquanto cantávamos os parabéns, num ambiente intimista e iluminado por duas pequenas velas, dei por mim a pensar na imensidão da vida e na certeza de que nunca poderemos cair na tentação de ficarmos de braços cruzados à espera de soluções.

O tempo passa e, com ele, as oportunidades de nos afirmarmos perante o mundo e ganharmos o respeito do nosso reflexo no espelho.

A sensação de que vamos vivendo de fase intermédia em fase intermédia acaba por se revelar efémera quando nos confrontamos com os calendários acumulados ao longo da vida. Trezentos e sessenta e cinco dias por ano, trinta dias por mês, vinte e quatro horas por dia... Oh Doutor, não me diga que não temos oportunidade para mudar o que consideramos mal!

Quando ouço discursos sobre a falta de tempo tenho plena noção de que se confunde o tempo com vontade.

É altura de passar do "eu gostava" para o "eu quero e ninguém me impedirá".

Sim, Doutor, eu quero e acredito que conseguirei conquistar tudo aquilo a que me propuser.

Diga, Doutor? Dificuldades, barreiras e afins? Eu sei que existem e que me depararei com elas ao longo dos calendários, todavia, não posso deixar-me acomodar e, muito menos, limitar pelas mesmas. Chamem-me birrenta, mas, pura e simplesmente não quero! Se me deparo com obstáculos no caminho, das duas uma, ou decido contorná-los ou transformo a raiva em resultados e afasto-os.

Sei o quero fazer da minha vida e até me arriscaria a nomear os parceiros ideais para tal demanda, mas guardo os nomes para mim na esperança de que algumas peças do puzzle a que chamam destino descubram por elas mesmas a importância que detêm para a solução do todo.

Sim, são todos aqueles seres fantásticos com quem me tenho cruzado e que complementam o mundo ao estimularem-no das mais variadas maneiras.

Estímulos, é disto que o mundo precisa para que o palpitar do coração não pare nunca e a minha vida se mantenha no rumo que eu decidi. Não cedo!

O segredo é simples, ao sentir que a vida me tira algo, apenas terei que encarar o facto como um empurrão para seguir na direcção certa, rumo à felicidade.

Eu conquistarei o meu destino, garanto-lhe Doutor, simplesmente porque... assim o quero!!

Ah, e não me interessa se a minha forma de descodificar a vida se assemelha a um livro de auto-ajuda. O destino já me deu uma árvore. Se os meus devaneios se transformarem em livro, apenas ficará a faltar o filho... (o que implica todo o processo de descoberta do pai, que se resolverá no tempo certo, sempre com a certeza de que não optarei por um rebento de marca branca, mas sim, por uma griffe tão birrenta quanto eu!).

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Chopin & Beethoven

Boa noite Doutor,

Ando há dias para vir ao consultório, garanto-lhe que a vontade de falar consigo tem sido gigantesca. No entanto, tenho adiado a consulta vezes sem conta até que hoje, ao chegar a casa, decidi optar por música pura e posso afirmar que se aqui estou é porque Chopin me empurrou.

Sim, Doutor, Chopin. É incrível como algumas criações humanas conseguem superar a barreira dos anos, imunes a rugas, crises, revoluções, fronteiras e noções contorcidas de evolução. Sou adepta de ritmos alternativos e decorações minimalistas, mas os sons que ecoaram pela casa - com todo o seu esplendor e reminiscências rococós - fizeram com que o tempo abrandasse e as paredes me aninhassem longe de tudo e todos. Apenas eu e Chopin. Apenas eu e algo genuíno. Apenas eu e o presente. Apenas eu... aqui.

Diga, Doutor, também gosta de Chopin? Claro que pode por o cd a tocar.

Ah, magnífico... simplesmente único... desta forma, o divã sabe-me bem a triplicar...

Sabe, na semana passada fui comprar o jornal pela manhã e dizia-me a rapariga atrás do balcão "Chopin? Humm, não conheço esse, mas deve ser bom!".

Não consigo criticar a falta de conhecimento dela. Apenas porque a miúda conseguirá, de certeza, nomear os músicos pop que estão na berra e eu passaria por ignorante ao assumir que desconheço a idade e a nacionalidade da Lady Gaga. Apenas sei que a artista em questão vestiu (literalmente) carne suficiente para alimentar uma família durante semanas.

Pois é, a noção que cada um tem do mundo contribui para a riqueza do mesmo, contudo, poderia estar aqui horas infindas a divagar sobre a verdadeira ignorância que grassa pelo planeta, traduzida em intolerância e falta de empatia.

Devaneios à parte, a verdade é que vim até cá porque entrei numa nova fase de mudança e os níveis de introspecção voltaram a subir.

Diga, Doutor?

Sim, já tomei as gotas de paciência e até ponderei comprar um antibiótico para a incerteza, mas estava esgotado e acabei por optar pela infusão de campo com chuva e música intemporal. Fez algum efeito, algum...

Enfim, não é fácil ter a cabeça cheia de sonhos no contexto actual. O destino já me deu tantas coisas, retirou-me outras tantas e eu tenho tentado contrabalançar prós e contras de cada passo sem perder por completo a sanidade mental que me resta.

Não, Doutor, não idealizei uma vida perfeita. Idealizei uma vida com alguns momentos perfeitos, encontros surpreendentes e, sim, um certo requinte alternado com passagens por tascas genuínas na companhia de pessoas interessantes.

As pessoas... essa eterna surpresa que o destino me reservou. Ao entrar em mais uma fase de incerteza, não quero nem posso esquecer-me de modo algum de que tudo é passageiro, à excepção das relações verdadeiras com amigos, famílias e amores (sim, no plural).

Tudo depende da forma como encaramos a vida. Há tempos, tentei compreender mais um pouco do ser humano e dei por mim a pensar como - em plena época da tão famigerada crise de valores económicos e sociais - encarariam os mais de seis biliões de seres três simples elementos: uma árvore, um objecto de madeira e uma corda.

Se, para alguns, o pedaço de madeira simboliza o banco no qual se pendurariam para o enforcamento, eu arrisco que os três "ingredientes" seriam ideais para a construção de um baloiço na minha árvore genealógica de modo a transportar todos os sorrisos do passado para o presente.

Aqui entre nós, posso contar-lhe que quem outrora me construiu um baloiço numa velha oliveira faleceu de forma infeliz porque se suicidou para fugir à solidão da velhice, mas com a sua construção arcaica poderá ter-me salvo da solidão da vida adulta, na qual nos fazem crer que apenas somos importantes para fins estatísticos.

Ah, Chopin deu lugar a Beethoven... Esse senhor também tem andado lá por casa. A sensação que transmite é completamente diferente, ao gerar a ânsia de sair à rua e gritar em plenos pulmões todas as palavras que nos apetecer, ligadas por um fio invisível e intransmissível, surdos a todas as todas e quaisquer convenções sociais. Apenas... porque sim!

Ai ai, como sabia bem poder ser louca por instantes, para que a sociedade me deixasse em paz e mudasse de passeio para o outro lado da rua, deixando-me usufruir do luxo passageiro de ser uma eremita social.

Pouco se pede a um louco, é quase como se ganhassem o estatuto privilegiado de "simplesmente existirem", pairando sobre a realidade e vivendo num mundo só seu.

Nah, pensando melhor no assunto, eu não me absteria de ir para a rua gritar, mas preferia que mudassem para o meu lado do passeio e me confrontassem de forma construtiva sobre a minha loucura e as palavras gritadas à chuva sem nexo nem razão aparentes.

Sabe, Doutor, é que o mundo seria uma seca sem opiniões alheias.

Bem, vou-me embora. Acho que é desta que vou para a rua gritar o que me vai na alma, entorpecida pela música de Chopin e ensurdecida pelos sons de Beethoven.

Quem sabe, talvez me cruze com alguém que também entenda que a chuva não é alimento para depressões e seja tão louco quanto eu para perceber que apenas nos dias chuvosos é possível vislumbrar o magnífico arco-íris.