terça-feira, 20 de outubro de 2009

A Tia Pallete II

Olá Doutor,

na última consulta saí daqui com a sensação de que faltava dizer tanta coisa sobre a tia Pallete. Sabe, acho que todos possuímos um lado "Palletiano", caracterizado pela capacidade de perceber que numa viagem de (v)ida é possível transformar pontos de chegada em novos pontos de partida.

Para ser sincera, cheguei a considerar a tia Pallete como uma aposta válida nas últimas eleições para a Junta de Freguesia lá da terra, mas ela recusou a ideia, dizendo que ainda não se sente preparada para se tornar numa figura pública. Eu, claro, idealizei toda a campanha eleitoral. Adoro os bastidores da política pois só dão pela nossa existência quando as coisas correm mal e, até lá, podemos andar na rua à vontade!

A campanha da tia Pallete teria como base o facto de estarmos a falar de alguém que oscila entre os estilos de vida sedentário e nómada. Por isso mesmo, considero que à sua candidatura se adequaria perfeitamente o lema político "Ficar por opção". Não seria frutuoso? Até soa a modelo de vida, percebe? Um exemplo a seguir por outras alminhas desamparadas nos meandros do Devir (que a filosofia tão bem sabe explicar).


Durante o período em que somos bombardeados com publicidade política nos outdoors e na caixa do correio, recomendaria para os encontros privados da tia Pallete com o mundo a música Les Jours Tristes do Yann Tiersen, com a voz do Neil Hannon. Em relação à banda sonora da campanha eleitoral, a escolha torna-se mais complicada.

Sabe, é que me encontro numa fase em que todas as músicas se enquadram perfeitamente numa ou noutra memória. Dou por mim a interiorizar cada frase... não consigo ouvir por ouvir... o corpo pede que escute com atenção.
Oh Doutor, chega a tornar-se irritante!

Além disso, existem
músicas magníficas que não merecem ser desperdiçadas no contexto eleitoral. Falo daquelas que gostaríamos que nos cantassem baixinho, ao ouvido, acompanhadas pela sensação magnífica do sopro quente no pescoço a ponto do resto do corpo se arrepiar... ou então que dispensam sussurros e pedem a cumplicidade do silêncio partilhado... como Hallelujah do Jeff Buckley, My Oblivion dos Tindersticks ou o Fake Empire dos The National, entre muitas outras...

Ai ai, Doutor... Ligou o ar condicionado porquê? Eu sei que as temperaturas desceram, mas... Hum? Diga? Aahh, não ligou... bem... pois... isso deve estar estar avariado, por momentos senti a temperatura a subir...

Ora, deixemos os calores de lado e passemos à frieza da tia Pallete, tão necessária para a sua campanha eleitoral e afins...


Uma coisa é certa, a tia Pallete entraria na corrida eleitoral como independente. Aquela mulher tem a mania das independências em relação a qualquer tipo de hierarquia, seja de que ordem for. Chegou mesmo ao ponto de desprezar e criticar a hierarquia dos sinais de trânsito quando, em pleno passeio de carro pela vila, dei por ela a berrar janela fora "Quer dizer, os semáforos trabalham noite e dia no mesmo local, depois chega aqui o senhor polícia e acha que manda nisto tudo?!!"... Doutor, não comento... Já ninguém me tirava da cabeça a imagem de carros patrulha com as sirenes ligadas a perseguirem-nos ao longo de quilómetros e quilómetros de asfalto e terra batida. É que os polícias da vila têm o ego tão inchado pelo orgulho na profissão como as respectivas barrigas pela cerveja (provavelmente, as únicas "louras" das suas vidas numa terra de mulheres morenas). Enfim, sobrevivemos!

Se a tia Pallete fosse eleita, já a estou a imaginar a beber o seu café matinal na "Tasca do CC" ("CC" é uma forma "in" que o Chico Castanha encontrou para atrair juventude ao seu estabelecimento comercial, reconhecido a nível distrital pelas bifanas no pão). Continuando... lá estaria a tia Pallete a beber o seu café, enquanto projectava a decoração da Junta para o seu encontro diário com o mundo... autárquico. Claro que não podemos esquecer as velinhas aromáticas e as pétalas de flores, espalhadas pelos 15m2 do gabinete, entre um computador de 1990 e uma impressora de 2000 (o mais recente avanço tecnológico daquela rua). Com ela as coisas iriam mudar!

Ora nem mais, acredito que a tia Pallete faria toda a diferença por conseguir ver "the big picture" numa "small town" e não se perder com pormenores aos quais se atribui demasiada importância, mas também por criticar quem lhe apetece e respeitar quem merece.

Lembro-me dela me dizer que um dia gostaria de ajudar algumas das pessoas com quem partilhou as suas experiências de colarinho azul por se tratarem de seres genuínos e não se deixarem abalar pelas fases intermédias da vida, continuando a ter esperança e a lutar. A tia Pallete é assim mesmo, vive cada um dos seus dias numa bolha multicolor, decorada consoante a sua maneira de sentir a vida e não deixa de acreditar em milagres terrenos pois sabe que cada ser humano tem dentro de si a força necessária para não fechar os olhos perante os desafios.

"Oh rapariga, nunca te esqueças disto", dizia-me ela no dia em que nos despedimos "Não precisas de ser crente para acreditar em milagres. Não será a fé a salvar-te, mas sim a capacidade de conciliares os sonhos e a realidade. Pega no melhor que cada um deles tem e constrói o teu castelo de areia. Se o mar o destruir, paciência, constrói outro e não te percas a tentar perceber cada partícula granulosa. Quando acreditares verdadeiramente que mereces um castelo e lutares por isso, o milagre acontecerá."

Resumindo e concluindo, eu teria votado nela! Você não?

Talvez nas próximas eleições...

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

A Tia Pallete

Boa tarde Doutor,

Ai, que saudades de me meter a caminho do consultório com vontade de falar consigo! Nos últimos tempos, ainda saí de casa uma ou duas vezes decidida a visitá-lo, mas optava sempre por outras paragens a meio do caminho. Não sei bem o que se passou comigo e, olhe, cheguei a ter perto de 40 graus de Introspecção. Por momentos, temi que se tratasse de Introspecção A...


Um dia, quando vinha a caminho, dei por mim numa esplanada a ler o jornal e decidi que estava na altura de ter um tratamento de choque. Foi então que liguei à minha tia Pallete e pedi se daria para passar uns dias lá em casa. Sim, a tia Pallete. É um nome estrangeiro... saído do Portugal profundo.

A tia Pallete é uma mulher com muita "xixa", embalada com roupas brancas e uma experiência de vida extraordinária como colarinho azul. Sempre ouvi falar dela como sendo uma pessoa assertiva, sem muito tempo (nem vontade) para devaneios pseudo-adolescentes. Ora pois, alguém assim tão frio era mesmo do que eu precisava para me ajudar a encontrar o lado morno do meu ser, uma espécie de anti-inflamatório para a introspecção, que começava a alastrar-se dentro de mim.

Quando cheguei, recebeu-me de braços abertos, olhou para as minhas mãos e pestanejou enquanto dizia alto (uma característica dela) "Ai filha, que mãos de escritório são essas?? É assim que esperas evoluir e ser feliz? São as mãos que agarram a vida. Cá para mim, tens tentado agarrá-la apenas com palavras e assim não resulta! Ou então, nunca sentiste no âmago a ânsia de agarrares alguma coisa a sério, o que torna a tua existência um tanto ou quanto superficial! Deixa lá, quando saíres daqui, serás outra. Garanto-te!".

Oh Doutor, ainda tinha a mochila às costas e fiquei ligeiramente apreensiva, já para não falar na raiva que senti ao ouvir aquela mulher a chamar-me "superficial". Será que ela iria meter-me a trabalhar no campo, agarrada à enxada, para ganhar bolhas, arranhões e calos? Eu tinha decidido ir até nenhures para me limpar mentalmente e bastaram alguns minutos para que a questão deixasse de ser o retiro espiritual e se centrasse naquela senhora. Sim, naquela personagem que trocou a linha de Cascais por uma linha de produção de momentos únicos que muitos considerariam rudes e outros aplaudiriam de pé.

Decidi arriscar e fiquei por lá quinze dias, num quartinho muito simples. Quartinho esse - obrigada tia! - sem imagens de santos, folhos cor-de-rosa ou bibelots de porcelana brilhante com retoques dourados. A tia Pallete é uma minimalista à sua maneira e, tal como eu, não é propriamente fã de ter trezentas molduras espalhadas por toda a casa.

As memórias, ao contrário das fotos, não são estáticas. Numa vida tão dinâmica em pleno século XXI (mesmo que para muitas pessoas, vida dinâmica seja sinónimo de se mexerem muito em rotinas estupidamente pequenas) as fotos podem limitar as histórias e experiências existenciais. Concordo que, muitas vezes, tenhamos a tendência para eternizar sorrisos e, de facto, na maioria das fotos caseiras existem muitos sorrisos... demasiados... No entanto, a grandeza da existência comporta todo o tipo de lágrimas, sejam elas de alegria ou de tristeza.


Ao descobrir que a tia Pallete também preferia argumentar o presente e o futuro com memórias, sem cair no erro de se tornar dependente de provas adulteradas - os sorrisos fotogénicos - percebi que os dias seguintes seriam bastante curiosos. Sabe, Doutor, tivemos conversas fantásticas, que começavam a meio da tarde e terminavam de madrugada.

Na primeira manhã em casa da tia Pallete, acordei com um sol estupendo a bater nas janelas. Ela já estava levantada e andava pela casa a espalhar pétalas de rosa e velas. "Oh pá..." pensei "Ela deve ter um encontro hoje e aqui estou eu, a servir de empata". Perguntei-lhe se iria ter algum encontro e ela simplesmente respondeu que sim, que todos os dias tinha um encontro consigo mesma e que gostava de preparar a casa conforme lhe apetecia. "Achas mesmo que tudo o que é bom e belo tem que ser obrigatoriamente partilhado? Podes vibrar com tanta coisa só porque sim, porque te apetece! Todos os dias tenho um encontro a dois, eu e o mundo! Pega aí nesse frasquinho de ambientador e vai borrifando todas as divisões, hoje o encontro é a três porque estás cá".

Os dias foram passando e uma certa noite decidi voltar ao assunto da primeira manhã, perguntando-lhe se a sua dedicação ao trabalho e aos encontros com o mundo não seriam uma forma inconsciente de roubar tempo a outras partilhas da vida. A tia Pallete, que já tinha bebido uns copos enquanto comia bifanas em promoção, respondeu-me "Oh filha, lá por estares de volta ao campo, não quer dizer que optes por uma forma bucólica de veres a vida!! Já não vivemos no século XVII! Preferes que te construam um Taj Mahal por teres morrido no parto do 14º filho ou alguém que se sinta feliz por ter passado uma tarde contigo a construir simples castelos de areia?".

A pergunta era estupenda e preparava-me para responder quando ela continuou o seu raciocínio... "Sabes, tive momentos deliciosos a construir diversos castelos de areia com diversas pessoas. Cada ser com quem partilhas a tarde torna o castelo único porque foi feito a quatro mãos. No entanto, isso não implica que não o consigas construir sozinha. Apenas constróis o castelo a quatro mãos se te apetecer e, sim, existe sempre o risco de encontrares mãos habilidosas e outras mais desajeitadas, mãos que te ajudam numa tarde e outras que vão ajudando a vida inteira. Tudo tem o seu valor!"

"Sim, tia, mas por vezes questiono-me se..."

Ela interrompeu-me de forma brusca, entornando o copo de vinho tinto na toalha branca "É esse o teu problema, rapariga, questionas em demasia! Sempre me disseram que tinhas tanto de filósofa como de louca... Sim, és louca por filosofar tanto! Não questiones tudo e todos, perdes demasiado tempo nisso! Vive e mais nada!"

"Oh, tia, mas eu vivo! Acha que não vivo? Recuso-me a..."

Ela voltou a interromper-me "Aprende de uma vez por todas, não me interessa saber como esta toalha ficou manchada, a toalha está manchada e pronto. A mim, interessa-me recordar que a mancha na toalha é um pormenor insignificante de algo muito maior, esta conversa contigo. Não deixes de te questionar, mas também não caias no erro de tentar compreender tudo. Oh rapariga, vive e não desperdices tempo com devaneios! O tempo não pára, é como um comboio em andamento. A vida é assim mesmo, tens que seguir viagem no tempo e não perderes parte dessa viagem a tentares travá-lo por ninharias. Mais cedo ou mais tarde, a viagem chega ao fim..."

Sabe uma coisa, Doutor, tantos dias passados sobre aquele jantar e as palavras da tia Pallete ainda ecoam na minha cabeça... Sim, cada um de nós possui um bilhete único para usufruir de algum tempo e, tal como acontece em qualquer viagem, passamos em alta velocidade pelas paisagens e pelas pessoas. É certo que não conseguiremos saber tudo sobre o mundo numa única existência, daí ser tão importante valorizarmos o que realmente interessa e o que ajudará a tornar a viagem numa experiência aprazível até chegarmos ao destino.

sábado, 3 de outubro de 2009

We will resist

Olá dona Deolinda,

Como tem passado? Ainda bem que a vida vai andando...

Pois, já sabe como eu sou. Para mim, a vida não tem que ir andando, tem que andar, correr, pular...

E olhe, por falar em correr, só passei mesmo para entregar esta música ao Doutor. Não se importa? Obrigadinha! Diga-lhe que, presentemente, ando a conquistar Tempo para fazer milhentas coisas com a vida no futuro.

Até lá, vou-me inspirando em sons como este e na certeza de que a tudo se resiste quando não esquecemos a razão pela qual se iniciou a caminhada, ou seja, aquilo que nos espera no fim do caminho. "We were made for much more, made for anything we want..."

Até breve!