segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Etapas

Olá Doutor,

Curioso, também está a ouvir Rodrigo Leão. (link)

O caminho para o consultório teve a mesma banda sonora e vinha a pensar na forma como a minha vida se resume a uma correria incessante só para que me ouça a respirar e saiba que estou viva.

Páro, ganho fôlego e recomeço sem que nada me trave.

Corro em dias de sol, deixando que a luz me envolva e mime.

Corro em dias de chuva, deixando que as lágrimas do mundo se fundam com as minhas.

Corro até não poder mais.

Corro para a morte.

Todos corremos.

No entanto, não é a últma etapa que me interessa.

Interessam-me as etapas intermédias, no final das quais olho para trás de modo a confirmar que não é um único ser que chega, mas sim uma multidão.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Telepatia pré-paga

Doutor...

Doutooooooor... consegue ouvir-me?

Doutor? Dout... Está a ouv... Estou a perd... Não devo ter rede telepática nesta zona. Raios! Vou mudar de sítio.

E agora? Consegue ouvir-me? Concentre-se.

Está no escritório? Olhe, então estique-se no divã por mim, pode ser?

Obrigada. Sabe bem, não sabe?

A voz que está a ouvir no interior da sua cabeça não é imaginação, sou eu. Sim, eu!

Hum, ouvir no interior da cabeça... Questão curiosa esta. Se o nosso sistema auditivo implica que as ondas sonoras (externas) sejam recebidas no pavilhão auricular (pomposo, não é?) e encaminhadas para o chamado ouvido interno... como se chamará quando temos consciência de vozes que vêm de dentro?

Não, Doutor, não estou a falar das "vozes" que provocam a toma de antipsicóticos. Falo daquelas que nos preenchem a mente e entre as quais surgem diálogos infindáveis.


Será que ouvimos os nossos pensamentos ou... Diga Doutor? Como assim, não percebe o que se está a passar?

Hoje decidi optar pelo admirável mundo novo da telepatia. Diga lá, não estava à espera desta, pois não?

Andava aqui por casa, rodeada das cores, cheiros e sons do costume até que me apeteceu provar um pedaço de silêncio. É estranho, sabe. É... vazio... oco, mas enche-me a mente de tal maneira que quase parece rebentar.

Eis quando decidi ir à internet pesquisar sobre pacotes de telepatia pré-pagos. Comprei um online e, olhe, aqui estamos nós.

Dá para uma hora. Não é muito tempo, eu sei, mas os outros tarifários eram caros e eu tenho que poupar para as prendas de Natal.

Pelo menos, deve dar para lhe falar sobre a forma como a estranha ausência provocada pelo silêncio faz sentir a existência de outras pessoas espalhadas por aí. Não ouço, vejo, cheiro, toco ou saboreio as presenças delas, mas sinto-as nas suas vidas.

São muitas, deambulando por inúmeros caminhos e, curiosamente, passando umas pelas outras sem interagirem, nem perceberem que integram um todo.

A nossa natureza torna-nos seres estranhos porque sentimos aqueles que nos rodeiam através das coisas, ou seja, não os vemos, ouvimos, cheiramos, tocamos ou saboreamos no seu estado puro. Encaramo-los como algo comum, mais do mesmo, e apenas tomamos sentido da sua essência quando nos dedicamos a uma evolução conjunta.

Sabe, é que as pessoas não se reduzem aos acessórios que usam no quotidiano, meras adaptações de algo que na maioria dos casos foi feito a pensar em tudo menos nelas. Em suma, as pessoas não são o que se vê, mas aquilo que se sente.

Uma vez que estamos longe, vou propor-lhe um exercício.

Feche os olhos e pense numa pessoa. Não tem que ser alguém com uma característica específica. Uma pessoa qualquer.

Vá, rápido que a telepatia paga-se. Olhe, pronto, posso ser eu. A sério, esteja à vontade.

Não se esforce por recordar um momento em especial que tenhamos tido ou um bem material que tenhamos partilhado. Relaxe no divã e, simplesmente, pense em mim.

Não, não está a fazer uma figura ridícula. Ainda por cima está aí sozinho. Vá, pense em mim... só uns segundos... de olhos fechados... isso mesmo.

Já pensou? Óptimo.

Agora, diga-me, sentiu a minha roupa, a minha casa, os meus gestos? Não, pois não?

O que sentiu?

Pois... esse formigueiro mental sem nome sou eu na minha forma pura e quanto melhor nos conhecermos maior será a sensação. Porquê? Ora, porque à semelhança da água transparente que enche uma jarra, as essências daqueles com quem nos partilhamos preenchem a nossa existência sem que seja necessário vê-las.

Percebe?

Doutor? Diga? Estou a deixar de o ouv... Chiça, acabou o plafond telepático.

Uma coisa é certa, até voltarmos a encontrar-nos, fica o formigueiro que apenas os sentimentos fortalecem e a certeza de que andamos pelos quatro cantos do mundo (redondo), conscientes da existência um do outro.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Adrenalina

Boa noite, Doutor, como está hoje?

Cruzei-me com a Dona Deolinda nas escadas do prédio. Já sentia saudades dela. Tenho aparecido quase sempre sem avisar e a horas impróprias, o que dificulta todo o processo de trocar um sorriso meu por um número infindável de cusquices dela. É incrível perceber como o mundo daquela senhora tem alicerces em coisas simples e, aparentemente, fúteis.

No entanto, admito que apesar de não ter os mesmos interesses que eu, a Dona Deolinda merece admiração por manter a capacidade inabalável de se maravilhar com o que a rodeia (mesmo tratando-se de vidas alheias).

Passamos a vida a falar de "grandes obras" quando, na verdade, a verdadeira felicidade é potenciada regularmente através da simples partilha do ar com aqueles que tornam os pormenores grandes, as palavras cheias e a alma viva.

Este fim-de-semana fui mergulhar em multidão, reencontros e outros deleites para os sentidos: vi gentes, partilhei memórias, pude confirmar que o cheiro das castanhas na Baixa continua a ser especial (a poucos metros dos rasgos de campo existentes nas flores silvestres que por ali se vendem), partilhei sonhos, deixei-me transportar para o "Le Fabuleux Destin d'Amelie Poulain" por um carrossel, partilhei planos e apaixonei-me pelo pôr-do-sol no Tejo dourado.

Perante tanta coisa, confirmo que não pertenço a lado algum e que nunca existirão âncoras que me façam parar de rumar ao infinito. Porquê? Porque a incerteza da Vida se desvanece nos momentos em que conseguimos ter no mundo a nossa casa e nos outros o nosso lar.

Dedicamos demasiado tempo às mesmas dúvidas de sempre e desesperamos sem ganharmos consciência de que cada dificuldade deve ser encarada como um desafio.

Quer maior adrenalina do que viver numa geração em que a palavra "estabilidade" foi apagada dos dicionários? Acordar todos os dias numa época que desconhece o "longo prazo"?

Está na altura de aprendermos a respirar em conjunto e assumirmos a loucura que nos corre nas veias, saboreando o luxo de vivermos sem passarmos o tempo a provarmos que somos os seres excepcionais que a sociedade tão mediocremente idealizou.

Arriscar, fazer malas, viver com os erros, ficar, partir, rir sem razão, correr descalços pela terra e pelo alcatrão, pedir conselhos a um desconhecido, dizer sim, amar, dançar por casa, abraçar uma árvore, fumar um cigarro com um indigente, tocar os outros e sentir neles um arrepio, criar, chorar no cinema, mudar de sofá, de casa, de rua, de país, de vida... ou ficar no mesmo sítio e fazer coisas diferentes todos os dias.

Sobra-nos viver o hoje, sem as tretas do carpe diem estandardizado. Que se siga em frente, saboreando as gotas de vida que o tempo nos dá sem perdemos a certeza de que o mais importante não se trata do que pretendemos conquistar, mas sim das pequenas grandes coisas que nos conquistam pela sua simplicidade.

Não, doutor, não é fácil e todos os dias recebemos notícias de alguém que desistiu de lutar. No entanto, o mundo precisa de pessoas que acreditem no sol para lá das nuvens e transmitam esse conhecimento.

Acredito que o futuro deste planeta não passa por grandes teorias, mas sim por gestos simples e quotidianos, pelos sorrisos que partilhamos, pela beleza que transmitimos através de gestos espontâneos.

A confiança no futuro passa pela confiança nos outros e, por mais contraditório que possa parecer, não podemos limitar-nos a pensar globalmente, temos que agir localmente. Urge lançar pequenas sementes de esperança aqui e ali, darmos e assumirmos que gostamos de receber para que a consciência global ganhe raízes e ramos fortes.

O mundo não sobreviveu devido aos grandes feitos esporádicos, mas sim aos pequenos gestos de cada dia, às pequenas sementes de Amor que se lançam na Terra a cada momento. Não falo dos grandes amores que tanto se procuram. Falo dos pequenos, daqueles que nos aconchegam com o calor humano de um olhar cúmplice.

Sejamos pioneiros ao lançar grãos do futuro sem medos nem lamentos.

Sejamos crianças assumidas com as nossas birras de adultos por carrinhos, casinhas e paísinhos.

Sejamos humanos conscientes dos actos animalescos que cometemos.

Sejamos genuínos na forma de dar e receber.

Sejamos inovadores sem perder os ensinamentos do passado.

Sejamos visionários, arriscando soluções para mudar o mundo.

Sejamos loucos para passarmos da esperança aos resultados.

sábado, 27 de novembro de 2010

Reset

Olá Doutor,

Eis que chega um fim-de-semana com retoques natalícios e o país depressa esquece a crise. Vem aí mais um ano e o povo vive feliz com os seus subsídios de Natal. É altura para comprar os electrodomésticos com que se sonha há mais de trezentos dias, yupiiiii!

Sinceramente, já não me consigo espantar com o boom consumista que caracteriza esta época e, sabe uma coisa, fazem todos muito bem. Se têm dinheiro gastem-no antes que o Estado (ou o FMI...) se lembre de criar novas taxas num futuro próximo. Gastem tudinho! O mundo há-de sobreviver...

Que se lixem as paranóias mundiais, o cheiro nauseabundo da ganância, as trinta mil teorias sobre os problemas que hoje enfrentamos. Não passaremos de ratos de biblioteca até alguém se chegar à frente e passar à prática.

Que venham as conversas filosóficas de café acompanhadas por minis e tremoços.
Que venham as posições extremistas daqueles que nada fazem e muito falam.
Que venham as notícias negativas dos telejornais, como se a vida não tivesse qualquer traço positivo.
Que venham as pessoas cheias de vontade, apenas superada pelo medo.
Que venham mais senhores engravatados, entre um coffee break e um cocktail, falar sobre o que é ser pobre.
Que o mundo continue a ser governado por minorias apoiadas pela maioria silenciosa.

E a nível pessoal?

Que venham as convenções e os valores manipulados por uma falsa estabilidade, em detrimento da verdadeira felicidade.
Que venham as birras pueris dos adultos que preparam as próximas gerações.
Que venham mais carros xpto e T6, pagos à custa de se deixar de viver, conhecer o mundo, estar com amigos, dar jantares em casa com entradas e bom vinho.
Que venham as lamúrias dos que aguentam relações disformes porque têm medo de enfrentar os seus fantasmas sozinhos.
Que venham os que nunca se esforçaram por ter na cara metade um companheiro cúmplice de aventuras na conquista do mundo, centímetro a centímetro.
Que venha o medo de ficar só e não ter netos para contar histórias.

Enfim, que venha tudo e mais alguma coisa. São todas essas baboseiras que tornam o mundo divertido.

Oh, sim, o mundo poderia ser muito mais surpreendente se todos optássemos por lutar a sério pela felicidade interior e exterior sem contornos rococós, mas o que quer que lhe diga? O Natal chegou e eu decidi fazer reset!

Deixei de me chatear e vou seguir caminho com destino a uma vida simplesmente plena. Oh, sim, garanto-lhe que é desta! A vida flui sempre e os sorrisos, tal como as lágrimas, estão garantidos no futuro. Não me quero perder por atalhos superficiais, quero sentir que existo e faço coisas úteis a mim mesma e aos que me rodeiam. Quero sentir-me viva, independentemente do contexto universal. Nada é definitivo, mas podemos esforçar-nos por prolongar tudo aquilo que achamos valer a pena.

Não, Doutor, comprar electrodomésticos não está nos meus planos. Para já, o que tenho é suficiente e até agora não me fez falta. A nível pessoal... bem... os sonhos continuam bem acordados e brevemente terei o encontro anual com aquele senhor barbudo que se veste de vermelho e tem como animais de estimação duendes e renas.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

A minha sala...

Boa noite Doutor,

Desculpe o avançado da hora, mas a porta estava aberta e decidi entrar. Como seria de esperar, a Dona Deolinda já não está na recepção e quase consigo imaginá-la, neste momento, de rolos na cabeça a tentar ver uma das mil "novelas da noite" com os netos a correrem pela casa e a choramingarem com a birra do sono.

E você? Não devia estar em casa a relaxar? Enfim, esta noite o consultório juntou-nos, dois solitários a tentarmos contrariar a teoria de que o fim de dia apenas faz sentido com companhia.

Só não lhe recomendo a minha receita ideal para suprimir a "solidão social" porque cada pessoa é diferente, mas acredite que é fantástica a sensação de entrar no refúgio do lar, descalçar os sapatos, meter uma musiquinha com qualidade, encher um copo de vinho e deixar o corpo encaixar perfeitamente no sofá. Esta é, sem dúvida, uma das melhores formas para terminar o dia. Imaginei-a vezes sem conta e há muito que parte do sonho passou a realidade.

Quer dizer, ainda não conquistei a imagem idealizada na minha mente, na qual os sapatos seriam de salto alto, o dia teria implicado uma grande conquista a nível profissional e, vá-se lá saber porquê, a sala seria composta por um ambiente quente, apontamentos em creme e um grande sofá castanho com almofadas.

A verdade é que nunca tive uma sala assim e, sinceramente, não seria o tipo de decoração em que me apetecesse investir. No entanto, é uma imagem que não me sai da cabeça, apesar de já ter conquistado o momento de descalçar os sapatos altos à entrada do prédio depois de um dia de conquistas profissionais e me ter esticado a beber uma mini.

Sim, Doutor, admito, descalcei-me à entrada do prédio... não aguentava mais... e senti-me infantilmente realizada por conseguir chegar à porta de casa sem ser apanhada pelos vizinhos. Adoro a ideia de andar com os sapatos altos pela mão ao final do dia... sei lá... podia dar-me para coisas piores!

O âmago da questão está nas imagens que cada um tem guardadas na mente. Sei de amigas que desde cedo acalentaram o desejo de chegarem a casa e terem uma criança a correr-lhes para os braços, outras que idealizaram serem surpreendidas por um jantar romântico preparado pelos seus "mais que tudo".

Não quer dizer que não tenha já pensado em cenários similares, mas a tal sala não sofreu alterações com o passar dos anos, que apenas lhe juntaram uma continuação: a chegada de alguém a meio da terceira música. Alguém que depressa se aninharia ao meu lado no fantástico sofá castanho com vontade de partilhar o vinho e o final de dia. Alguém com novidades, questões retóricas, revoltas com o mundo, tentativas de solucionar o quotidiano alheio e um olhar sorridente.

Sabe, é estranho ter uma imagem tão definida na mente desde que me conheço enquanto adulta. É uma certeza que me tem acompanhado e não se desvanece.

No outro dia liguei à tia Pallete para lhe colocar esta questão. Bem, estivemos tempos infinitos ao telefone. Ela está bem, encontra-se a passar uma fase muito curiosa porque desconfia que está apaixonada por um outsider com quem se cruzou por acaso, mas algo dentro dela não lhe permite deixar-se ir por devaneios.

Não a notei diferente ou estupidificada, como tantas vezes acontece a algumas pessoas quando se afundam no marasmo das relações. Pelo contrário, considero-a mais lúcida do que nunca e nem me desligou o telefone quando lhe disse para deambular um pouco pelo novo sentimento que lhe preenche a alma, consciente de que a necessidade de ter os pés assentes na terra muitas vezes resulta em ter a cabeça lá metida, alheia ao lado da vida que não conseguimos agarrar com as mãos, mas que se revela ao corpo tão importante como o oxigénio.

Bem, voltemos à questão da sala idealizada, até porque se ela desconfia que lhe contei isto estou feita. Como estava a dizer, perguntei-lhe o que achava sobre a imagem mental que me persegue e a tia conseguiu voltar a surpreender-me.

"Filha, tu queres mesmo uma sala assim?" Então porque não lutas para a ter?"

Respondi-lhe que neste momento me sinto satisfeita com o meu estúdio recheado de tons verdes e que, ultimamente, não me tenho permitido sonhar muito com o futuro porque o mundo me exige ser realista todos os dias.

"Oh sim, a crise, a desculpa ideal para a apatia. Não me digas que te deixas levar pela especulação mediática! O mundo está mal, mas apenas piorará se as pessoas desisitirem perante as primeiras notícias negativas. Achas que é a primeira vez que tal acontece? Nada disso, o mundo faz-se de fases cíclicas. Se hoje estamos numa fase menos boa, apenas temos que querer ultrapassá-la. Nada é mais forte do que a força de vontade!"

"E o que me tens a dizer sobre a tua vontade? Queres mesmo essa sala? Queres mesmo ter alguém que te acompanhe na vontade de mudar o mundo ao final do dia?" Perguntou ela, com aquela voz assertiva que me faz tremer por saber que daí resultará um monólogo sem direito a intervenções...

"Lembras-te de objectivos que tenhas estabelecido ao longo da vida e que tenhas conquistado?"

Eu lembrava-me. Sim, Doutor, a nível profissional estabeleci limites que consegui conquistar, apesar de se terem revelado efémeros. Comecei a enumerar-lhe um ou outro e, obviamente, fui interrompida...

"Não entendo esta geração, a sério. Há um século atrás era muito mais complicado comunicar. Não existiam essas coisas das redes sociais e os telemóveis. Hoje vocês têm tanta forma de falarem entre si, de transmitirem mensagens de esperança, de se acompanharem ao longo da vida e sinto que a solidão está mais forte do que nunca. É quase como se, no meio de tantas possibilidades, vocês se perdessem. Chega a ser vergonhoso, filha.".

Não estava a perceber muito bem onde queria ela chegar com aquela ideia, mas a tia Pallete depressa continuou o seu raciocínio.

"Hoje em dia, as pessoas perdem-se a pensar naquilo que não têm em vez de darem valor ao que já conquistaram. Tens-te esforçado para conhecer mais um pouco do mundo todos os dias ou passas as horas de cabeça baixa a olhar para o umbigo?"

"O que quero dizer-te é que não te podes perder na imensidão das possibilidades e dos sonhos. A vida será o que tu quiseres, mesmo que a tua vontade passe por cenários simples. Não tens que recear parecer menor do que aqueles que vivem no meio do glamour porque grande é a felicidade e essa, minha cara sobrinha, acontece nos cenários mais inesperados.".

"Aquela sala é a tua vida, queres que seja acolhedora e sem grandes confusões, com espaço para momentos a sós e partilhados. Conseguirás conquistá-la no dia em que te concentrares no que queres e lutares por isso. Não adies a vida. Vive com vontade de seguir em frente, mantendo-te fiel aos valores que defendes e às verdades em que acreditas. E, num qualquer final de dia, darás por ti aninhada no sofá castanho com a pessoa que idealizou tanto aquela sala quanto tu.".

Bem, Doutor, depois disto tudo acho que apenas nos resta ir para casa. Não se preocupe, estar sozinho não é crime, trata-se apenas de uma fase positiva e passageira... Vamos?

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Não cedo!!

Olá Doutor,

Como tem passado?

Aqui estou eu, novamente, para mais uma consulta. Acho que no dia em que deixar de frequentar o consultório apresentar-lhe-ei uma proposta para comprar o divã fantástico onde já me estiquei mais de cinquenta vezes.

Sim, cinquenta vezes, quem diria... Três anos e tanta coisa aconteceu na minha vida.

No outro dia decidi ler alguns dos relatórios das consultas e cheguei à conclusão de que o meu mundo sofreu alterações num grau que muita gente apenas atinge em décadas.

É verdade, na maioria das vezes fui eu quem optou por fazer as malas e partir. É sempre mais fácil do que ter as malas feitas e ficar à espera. Recuso-me a ceder perante o mundo, mas continuo à espera das surpresas do destino.

As eternas surpresas... Bela forma de continuar a ter esperança no futuro... Umas foram mais importantes do que outras e nem todas acompanhadas de sorrisos. No entanto, três anos depois, continuo a defender as mesmas causas apesar de todas as mudanças que o mundo gerou em mim.

Sabe, Doutor, sinto que chegou a altura de deixar de falar de surpresas. Quero ter razões para aparecer por aqui e contar-lhe as minhas descobertas.

Nada disso, não são a mesma coisa. As surpresas implicam incerteza. As descobertas implicam conquistas... e não é que conquistei uma imensidão de boas memórias com o passar da vida?

Ontem juntei-lhe mais uma, a minha avó a soprar as velas do 76º aniversário. Enquanto cantávamos os parabéns, num ambiente intimista e iluminado por duas pequenas velas, dei por mim a pensar na imensidão da vida e na certeza de que nunca poderemos cair na tentação de ficarmos de braços cruzados à espera de soluções.

O tempo passa e, com ele, as oportunidades de nos afirmarmos perante o mundo e ganharmos o respeito do nosso reflexo no espelho.

A sensação de que vamos vivendo de fase intermédia em fase intermédia acaba por se revelar efémera quando nos confrontamos com os calendários acumulados ao longo da vida. Trezentos e sessenta e cinco dias por ano, trinta dias por mês, vinte e quatro horas por dia... Oh Doutor, não me diga que não temos oportunidade para mudar o que consideramos mal!

Quando ouço discursos sobre a falta de tempo tenho plena noção de que se confunde o tempo com vontade.

É altura de passar do "eu gostava" para o "eu quero e ninguém me impedirá".

Sim, Doutor, eu quero e acredito que conseguirei conquistar tudo aquilo a que me propuser.

Diga, Doutor? Dificuldades, barreiras e afins? Eu sei que existem e que me depararei com elas ao longo dos calendários, todavia, não posso deixar-me acomodar e, muito menos, limitar pelas mesmas. Chamem-me birrenta, mas, pura e simplesmente não quero! Se me deparo com obstáculos no caminho, das duas uma, ou decido contorná-los ou transformo a raiva em resultados e afasto-os.

Sei o quero fazer da minha vida e até me arriscaria a nomear os parceiros ideais para tal demanda, mas guardo os nomes para mim na esperança de que algumas peças do puzzle a que chamam destino descubram por elas mesmas a importância que detêm para a solução do todo.

Sim, são todos aqueles seres fantásticos com quem me tenho cruzado e que complementam o mundo ao estimularem-no das mais variadas maneiras.

Estímulos, é disto que o mundo precisa para que o palpitar do coração não pare nunca e a minha vida se mantenha no rumo que eu decidi. Não cedo!

O segredo é simples, ao sentir que a vida me tira algo, apenas terei que encarar o facto como um empurrão para seguir na direcção certa, rumo à felicidade.

Eu conquistarei o meu destino, garanto-lhe Doutor, simplesmente porque... assim o quero!!

Ah, e não me interessa se a minha forma de descodificar a vida se assemelha a um livro de auto-ajuda. O destino já me deu uma árvore. Se os meus devaneios se transformarem em livro, apenas ficará a faltar o filho... (o que implica todo o processo de descoberta do pai, que se resolverá no tempo certo, sempre com a certeza de que não optarei por um rebento de marca branca, mas sim, por uma griffe tão birrenta quanto eu!).

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Chopin & Beethoven

Boa noite Doutor,

Ando há dias para vir ao consultório, garanto-lhe que a vontade de falar consigo tem sido gigantesca. No entanto, tenho adiado a consulta vezes sem conta até que hoje, ao chegar a casa, decidi optar por música pura e posso afirmar que se aqui estou é porque Chopin me empurrou.

Sim, Doutor, Chopin. É incrível como algumas criações humanas conseguem superar a barreira dos anos, imunes a rugas, crises, revoluções, fronteiras e noções contorcidas de evolução. Sou adepta de ritmos alternativos e decorações minimalistas, mas os sons que ecoaram pela casa - com todo o seu esplendor e reminiscências rococós - fizeram com que o tempo abrandasse e as paredes me aninhassem longe de tudo e todos. Apenas eu e Chopin. Apenas eu e algo genuíno. Apenas eu e o presente. Apenas eu... aqui.

Diga, Doutor, também gosta de Chopin? Claro que pode por o cd a tocar.

Ah, magnífico... simplesmente único... desta forma, o divã sabe-me bem a triplicar...

Sabe, na semana passada fui comprar o jornal pela manhã e dizia-me a rapariga atrás do balcão "Chopin? Humm, não conheço esse, mas deve ser bom!".

Não consigo criticar a falta de conhecimento dela. Apenas porque a miúda conseguirá, de certeza, nomear os músicos pop que estão na berra e eu passaria por ignorante ao assumir que desconheço a idade e a nacionalidade da Lady Gaga. Apenas sei que a artista em questão vestiu (literalmente) carne suficiente para alimentar uma família durante semanas.

Pois é, a noção que cada um tem do mundo contribui para a riqueza do mesmo, contudo, poderia estar aqui horas infindas a divagar sobre a verdadeira ignorância que grassa pelo planeta, traduzida em intolerância e falta de empatia.

Devaneios à parte, a verdade é que vim até cá porque entrei numa nova fase de mudança e os níveis de introspecção voltaram a subir.

Diga, Doutor?

Sim, já tomei as gotas de paciência e até ponderei comprar um antibiótico para a incerteza, mas estava esgotado e acabei por optar pela infusão de campo com chuva e música intemporal. Fez algum efeito, algum...

Enfim, não é fácil ter a cabeça cheia de sonhos no contexto actual. O destino já me deu tantas coisas, retirou-me outras tantas e eu tenho tentado contrabalançar prós e contras de cada passo sem perder por completo a sanidade mental que me resta.

Não, Doutor, não idealizei uma vida perfeita. Idealizei uma vida com alguns momentos perfeitos, encontros surpreendentes e, sim, um certo requinte alternado com passagens por tascas genuínas na companhia de pessoas interessantes.

As pessoas... essa eterna surpresa que o destino me reservou. Ao entrar em mais uma fase de incerteza, não quero nem posso esquecer-me de modo algum de que tudo é passageiro, à excepção das relações verdadeiras com amigos, famílias e amores (sim, no plural).

Tudo depende da forma como encaramos a vida. Há tempos, tentei compreender mais um pouco do ser humano e dei por mim a pensar como - em plena época da tão famigerada crise de valores económicos e sociais - encarariam os mais de seis biliões de seres três simples elementos: uma árvore, um objecto de madeira e uma corda.

Se, para alguns, o pedaço de madeira simboliza o banco no qual se pendurariam para o enforcamento, eu arrisco que os três "ingredientes" seriam ideais para a construção de um baloiço na minha árvore genealógica de modo a transportar todos os sorrisos do passado para o presente.

Aqui entre nós, posso contar-lhe que quem outrora me construiu um baloiço numa velha oliveira faleceu de forma infeliz porque se suicidou para fugir à solidão da velhice, mas com a sua construção arcaica poderá ter-me salvo da solidão da vida adulta, na qual nos fazem crer que apenas somos importantes para fins estatísticos.

Ah, Chopin deu lugar a Beethoven... Esse senhor também tem andado lá por casa. A sensação que transmite é completamente diferente, ao gerar a ânsia de sair à rua e gritar em plenos pulmões todas as palavras que nos apetecer, ligadas por um fio invisível e intransmissível, surdos a todas as todas e quaisquer convenções sociais. Apenas... porque sim!

Ai ai, como sabia bem poder ser louca por instantes, para que a sociedade me deixasse em paz e mudasse de passeio para o outro lado da rua, deixando-me usufruir do luxo passageiro de ser uma eremita social.

Pouco se pede a um louco, é quase como se ganhassem o estatuto privilegiado de "simplesmente existirem", pairando sobre a realidade e vivendo num mundo só seu.

Nah, pensando melhor no assunto, eu não me absteria de ir para a rua gritar, mas preferia que mudassem para o meu lado do passeio e me confrontassem de forma construtiva sobre a minha loucura e as palavras gritadas à chuva sem nexo nem razão aparentes.

Sabe, Doutor, é que o mundo seria uma seca sem opiniões alheias.

Bem, vou-me embora. Acho que é desta que vou para a rua gritar o que me vai na alma, entorpecida pela música de Chopin e ensurdecida pelos sons de Beethoven.

Quem sabe, talvez me cruze com alguém que também entenda que a chuva não é alimento para depressões e seja tão louco quanto eu para perceber que apenas nos dias chuvosos é possível vislumbrar o magnífico arco-íris.

domingo, 17 de outubro de 2010

Xadrez para todos!

Olá Doutor,

É verdade, já estou de volta!

Não fique preocupado. Os níveis de introspecção estão altos, mas controlados.

Marquei esta consulta devido a uma frase que escrevi em tempos, na qual afirmava que me encontro a meio de um jogo de xadrez com o destino que dura há 29 anos. Não considero tratar-se de uma batalha, mas sim de um jogo amigável, com todas as tensões que qualquer jogo comporta.

Neste momento aguardo a próxima jogada e em cada veia do meu corpo borbulha a já conhecida raiva de não conhecer a estratégia do adversário, uma sensação que se tem intensificado nos últimos tempos por sentir que somos tantos a lutar diariamente para conseguirmos ter o mínimo de paz de espírito e saborear um pedaço de felicidade.

Já nem falo de conquistas materiais quando, efectivamente, são demasiados aqueles que atribuem muita importância ao que se vê, em vez que se tentarem aprimorar por dentro. Não existe telemóvel de última geração que faça concorrência à inteligência e essa, meu caro Doutor, não se compra em lado algum...


A especulação mediática sobre a crise tem efeitos devastadores nos mais fracos, gerando uma crise ainda maior, isto é, a apatia e o desalento com que se encaram os problemas. Irrita-me tanto, Doutor, (tanto tanto tanto!) que me apetece berrar e abanar o mundo. Chego, inclusive, a ter vontade de partir ao pontapé uns quantos muros sociais, cuja estrutura se vai solidificando de forma aterradora.

Doutor, imagine-se com um casaco de Inverno em pleno dia de Verão. Custa, não custa? O calor é tanto que chega a tornar-se insuportável... Ora bem, actualmente encontramo-nos com casacos pesadíssimos e o calor está mais forte do que nunca.

Todos os dias temos consciência de como custa suportar o calor, este eterno calor que nos faz transpirar desalmadamente quando, na verdade, o problema real não se trata do calor, mas sim no facto de perdermos demasiado tempo a pensarmos no assunto, a falarmos vezes sem conta sobre ele com um nó no estômago e de atirarmos culpas uns aos outros pela situação em vez de tentarmos encontrar uma solução viável e inteligente.

E qual é a solução? Tapar o sol? Passarmos a viver em arcas frigoríficas?

Não, Doutor, a solução baseia-se em algo tão simples como... tirarmos o casaco!

Doutor, assumo que a minha loucura me ajuda nos momentos em que perante os problemas me rio da vida, mas tenho dias em que o sorriso se torna refém da realidade ao perceber que, para qualquer lado para onde me vire, me deparo com pequenos seres excepcionais a tentarem desesperadamente (re)construir vidas despedaçadas pela incerteza. Por favor, deixem-nos respirar entre as jogadas com o destino, com direito ao ritmo e à estratégia que qualquer jogo de xadrez implica.

Precisamos de vozes construtivas e atitudes visionárias, sobretudo numa fase em que se impõe a tomada de grandes decisões. Um país, como qualquer ser humano tem que se construir de dentro para fora e, tal como qualquer pessoa, tem que assumir e aprender a viver com os seus defeitos e limitações de modo a que, partindo deles, possa evoluir no sentido da perfeição (mesmo que nunca a atinja na totalidade).

Sinto que este país que se assemelha a um velho de 80 anos, com imensa vontade de viver, mas limitado pelo tempo. Esse velho poderá encostar-se à espera da morte ou então pegar na sua experiência de vida e atar o máximo de pontas que foi deixando soltas. Apenas desta forma poderá morrer descansado. Agora, Doutor, imagine como seria fabuloso se o velho atasse as pontas em dez anos e percebesse que a vida lhe dera um plafond de mais duas décadas!

Sim, Doutor, isto é possível. Aliás, tudo é possível, basta querer.


Mesmo que o velho morra aos 85 o importante é que morreu a lutar, morreu a querer evoluir. O país irá durar muito mais e não acredito que morra de velhice. Poderá, sim, morrer por excesso de Velhos do Restelo.

Sim, Doutor, ando a frequentar as reuniões dos UA - Utópicos Anónimos - mas acho que não têm surtido os efeitos desejados porque ainda acredito no mundo, em nós, na força de cada um e no esforço conjunto para contra-atacarmos as eternas jogadas do destino.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Manual de Independência para Mulheres Casmurras

Ai, Doutor, ainda bem que consegui falar consigo sem hora marcada!

Posso esticar-me no divã?

Obrigada.

Uiiiii, sabe sempre tão bem... Acho que conseguiria estar aqui mais de cinco minutos em silêncio, a sério!

Bem, mas não será hoje porque tenho que baixar os níveis de introspecção. Talvez um dia me estique aqui caladinha, por agora não consigo.

Diga Doutor? Ah, eu com as mãos a tremer? Tenho, sim senhor. Nem sabe as provas com que uma mulher a viver sozinha se depara. São muitas e nem todas tendencialmente corriqueiras, acredite.

Por exemplo, porque acha que tenho as mãos e os braços a tremer desta maneira?

Não, doutor, não se trata de uma questão nervosa.
Não, também não me cruzei com alguém especial.
Nem à terceira tentativa? Garanto-lhe que não me deixaram um ramo de flores à porta de casa.
Não, nada disso, não me contaram qualquer cusquice inesperada no trabalho.
Népia, porque haveria eu de estar à beira de um ataque de nervos só porque parti uma unha?

Percebe agora? As sugestões que deu têm um grau de futilidade que assusta. Quer tentar mais uma vez? Vá lá, só tentando é que se consegue!

Acha mesmo? Ufa, também não. Garanto-lhe que não surgiu um PEC4... Até ver...

Enfim, se estou a tremer trata-se simplesmente de uma reacção dos músculos ao esforço que tive de fazer porque decidi ir comprar gás e declinar a gentil oferta do dono do estabelecimento para me transportar a botija, ou seja, aqui a menina carregou-a sozinha por uma questão de orgulho.

Oh Doutor, juro-lhe que não se tratava das leves e, muito menos, que eu vestia calções justos ou levava a camisa aberta...

Aqui para nós, acho que ganhei o respeito dos homens da terra! Mal sabem eles que demorei um quarto de hora a descobrir como raio se tira aquela pecinha cujo nome não me recordo e que faz "clic" na botija para que o gás fique pronto a ser utilizado...

Esta coisa de nos assumirmos perante o mundo como pessoas independentes tem muito que se lhe diga, sobretudo quando nos aproximamos a passos largos da quarta década de vida... Sim, doutor, a quarta década. Se do nascimento aos dez anos conta uma, dos dez aos vinte conta duas e dos vinte aos trinta conta três, faça as contas. O peso da idade é ainda maior do que parece!

Em primeiro lugar, nunca é fácil conviver com o drama dos elementos mais velhos da família "Ai filha, olha que se começa a fazer tarde. Assim ficas com os restos... Põe os olhos na tua prima que já arranjou homem e tem filhos!".

Doutor, eu sei que devemos respeitar quem já possui uma extensa experiência de vida, mas garanto-lhe que não é fácil manter o sorriso e a boa educação enquanto lhes explico que não existe uma árvore chamada "Boa Partideira", cuja semente brotaria da terra linda e viçosa, com cachos de "bons partidos". Sim, doutor, os homens perfeitos que a família tanto deseja para nós, meninas solteiríssimas, alvos de case studies simplesmente porque acreditamos que tudo tem um tempo certo para acontecer e, simplesmente, não desesperamos.

Cheguei, inclusive, a optar pelo tratamento de choque e oferecer no Natal o cd da ClaudIsabel com o hit "Preciso de um Herói", mas nem assim. "Homens a sério isso todas nós sabemos Cada vez há menos, cada vez há menos! Mas homens tolos, mentirosos e banais Cada vez há mais, cada vez há mais!".

Bah, não faça essa cara, doutor. Eu sei que soa a hino feminista ou desabafo de mulheres que atribuem demasiado valor a gajos que nunca as fizeram felizes, mas eu tinha que dissuadi-las, entende? Ouvir a mesma frase vezes sem conta desgasta o cérebro, chiça!

Em segundo lugar, há que saber lidar com a curiosidade de muitos daqueles que nos rodeiam. Na verdade, poucos têm a coragem de nos perguntar directamente o que lhes vai na alma "Será que se tornou celibatária ou, pelo contrário, nem deixa que a cama arrefeça de um para lá meter outro?".

Neste caso nem é muito difícil porque basta manter o suspense. Ninguém sabe se e com quem dormimos e, além disso, a tendência não é para acharem que o brilho da pele e o sorriso matinal são consequência de uma bela noite bem dormida ou simplesmente porque se acordou a amar o mundo sem saber porquê.

Em terceiro lugar, o famoso número ímpar nas jantaradas e nas férias de casais. Ora pois bem, doutor, considero esta questão especialmente deliciosa porque os amigos nunca perdem a expectativa de serem brindados pela pergunta "posso levar alguém?", ou seja, não se corre o risco de cair na rotina. Isto tudo para não falar da pergunta cúmplice e recorrente "Então... e novidades?". Bem, umas vezes tem-se e conta-se, outras tem-se e não se conta e ainda existem as ocasiões em que pura e simplesmente não se conta porque não existem.

Em quarto lugar surge a parte deprimente. Sim, quando as gajas são puras nos genes e odeiam todas as outras, especialmente as solteiras com novidades para partilhar. Essas são aquelas que arranjaram os seus "mais que tudo" na adolescência, casaram ou não, tiveram filhos e nunca se descobriram a si próprias enquanto mulheres, encarando os respectivos companheiros como caixas de ferramentas. Doutor, não entendo. A minha cara metade não pode limitar-se a umas quantas técnicas de bricolage..."Ui, ele é tão querido quando arranja a canalização e troca as lâmpadas de casa!" ou "Sinto cá uns calores quando ele arranja a máquina de lavar roupa!".

Poderia passar horas a contar os milhares de situações com as quais uma pré-trintona solteira a viver sozinha se depara, mas tenho que ir até ao meu "lar doce lar" porque ninguém faz o jantar por mim. As únicas vezes em que algo parecido acontece é quando coloco uma pizza no forno!

Considero que o maior trunfo nesta fase da vida é ter consciência da piada de cada situação e não perder tempo com ninharias. Os outros, aqueles que importam, conhecem e respeitam o todo que eu sou da mesma maneira como eu adoro tudo o que eles me dão através dos seus sorrisos genuínos.


Além disso, sinto que que os piores receios da família se dissiparão ("Ufa, não ficou encalhada!"), que encontrarei o meu número par ("Eh lá, trouxe alguém ao jantar!") e que as "donas de casa" irão ficar mais descansadas ("Olha, olha, será desta que se acalma?").

Apenas não sei para quando, mas também não perco tempo em estatísticas ou análises de probabilidades.
A vida brinda-nos de vez em quando e nada mais interessa.

Sim, doutor, porque a solidão tem o seu lado positivo e ensinou-me que sentir que estou viva por dentro é uma bênção que se tornará maior no dia em que partilhar este sentimento com quem vibra de igual modo com o mundo.

Até lá, continuarei a viver sem deixar que ânsia da procura turve a forma como encaro a vida e a lutar para ganhar o respeito dos homens da terra (acho que vou construir um barbecue no pátio!).

domingo, 10 de outubro de 2010

A geração das bicicletas

Olá Doutor,

Está tudo bem consigo?

Cheguei há horas de um casamento com amigos da minha geração e não me sai da cabeça como é incrível que debaixo dos trapitos da moda, acessórios, brilhos e experiências de vida tenha sido possível (re)descobrir a essência de cada um, bem como os traços de personalidade que nos uniram, na maioria dos casos, há mais de uma década.

Diz-se por aí que o tempo é o senhor do mundo, mas a partir do momento em que percebi que a genuinidade dos momentos partilhados superou os anos que passaram, quase posso afirmar que durante 26h30 fomos os senhores do tempo.

Sabe, não deixo de me surpreender pela forma como a empatia se gera de forma inesperada com todos aqueles com quem nos vamos cruzando ao longo da vida. Se algumas pessoas passam por nós com passo apressado e olhos no chão ou no infinito, outras param e metem conversa e é desta forma, tão pura e simples, que se constroem mundos. Aliás, Doutor, é assim que se constroem os castelos e se transformam sonhos em realidade.

Tive a prova de que nem todos os miúdos atrapalhados da geração de finais de setenta e inícios de oitenta (geração em que uns tinham mais mais borbulhas e outros mais inteligência) não se deixam limitar pelo contexto socioeconómico em que tentam recomeçar a vida vezes sem conta. Cada um, à sua maneira, vai transformando o mundo numa bolinha onde faz sentido viver e lutar.

São estes os putos das pastilhas Gorila e cujos sentidos ficaram marcados pelo "Feno de Portugaaaal, aroma da Naturezaaaaaaa" a quem, hoje em dia, não é permitido pensar em médio ou longo prazo.

Sei que muitos esqueceram a pureza desses anos e acabaram por se acomodar às vontades e ideais de terceiros, entregando-se a lutas sem sentido, mas outros mantêm o sorriso rasgado com que recebiam um Epá e hoje contam uma bela história de embalar aos respectivos rebentos intitulada "A Geração das Bicicletas".

Se o Doutor quiser, eu posso contar-lhe a história. A sério? Quer mesmo ouvi-la? Ok, então eu conto. Tente não adormecer.

A história começa como todas as histórias de encantar e termina como deveriam terminar todas as histórias de vida. Aqui vai:

"Era uma vez uma geração de meninos a quem foram oferecidas bicicletas sem rodas. Esses meninos ficaram muito tristes porque queriam conquistar o mundo a pedalar e houve mesmo quem fizesse birras gigantescas em vão.

Durante anos, foram muitos os que encostaram as bicicletas num canto, tapadas por plásticos velhos e poeirentos e delas se esqueceram. A vontade de pedalar foi-se dissipando e, em muitos casos, chegou mesmo a desaparecer, fazendo com que as bicicletas velhas fossem despejadas nuns depósitos especialmente criados para o efeito chamados de Sonhos Irrealizáveis.

Ora, mas nem todos se desfizeram das prendas que tinham recebido e alguns preservaram as bicicletas, tratando delas regularmente. Eram poucos, é certo, mas existiam e não tinham problemas de falar da vontade que tinham em obter as tão desejadas rodas para assim aprenderem a andar a toda a velocidade por todo o lado.

Com efeito, houve mesmo quem chegasse a conseguir as rodas. Primeiro uma e depois outra, em alguns casos com anos de intervalo e grande esforço. Esses meninos tinham realizado o sonho por persistência ou orgulho e ostentavam a sua conquista nas ruas, para contentamento e inveja de muitos.

No entanto, os problemas não estavam totalmente solucionados. Ainda faltava aprender a pedalar...

Para alguns meninos da geração das bicicletas sem rodas, as primeiras quedas foram suficientes para que desistissem. Nem todos aguentaram os joelhos esfolados ou os arranhões nos braços e depressa surgiria um novo tipo de depósitos aos quais se atribuiu o nome de Sonhos Adiados.

Ao contrário do que acontecera inicialmente, nestes depósitos as bicicletas não foram amontoadas, mas sim preservadas, sem que ninguém percebesse muito bem porquê. Chegaram, inclusive, a fazer-se manifestações com o objectivo de se destruírem todos esses símbolos da infância que continuavam brilhantes e aos quais nenhuma alminha dava uso.

Os anos foram passando, uma década deu lugar a outra e ambos os depósitos iam ganhando proporções preocupantes até que um dia, numa data de que ninguém se lembra exactamente, começaram a surgir meninos crescidos com crianças pelo braço às quais eram mostradas e oferecidas as bicicletas dos Sonhos Adiados.

Esses meninos crescidos eram todos aqueles que, apesar da dificuldade inicial, tinham aprendido a andar de bicicleta. "Não" diziam eles aos meninos mais pequeninos "Não foi fácil dominar a técnica para pedalar na perfeição. Aliás, ainda hoje é possível cair, mas se tal acontecer depressa se salta do chão, sacode a terra da roupa e pega na bicicleta para voltar a pedalar.".

Foi assim que as bicicletas dos Sonhos Adiados se tornaram nas bicicletas dos Sonhos Partilhados."

Sabe, Doutor, tenho consciência de que a minha geração, como todas as outras, não é perfeita. Todavia, os encontros e reencontros deste fim-de-semana fazem-me crer que, apesar do que que passa no planeta, muitos meninos crescidos partilharão sonhos com a geração que ainda está a ganhar forma.

Além disso, ainda acredito no meu sonho de menina, no qual os Sonhos Irrealizáveis e os Sonhos Adiados se transformarão em meras memórias da geração que aprendeu a pedalar para conquistar o mundo.

(link com banda sonora para a viagem!)

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Vá para fora...

Olá Doutor, posso?

Doutor? Está a ouvir-me?

Ah, pronto! Está com um ar abatido. Não teve férias? Então, se teve, está assim porquê? Não me diga que é mais uma daquelas pessoas que deixa que as saudades o impeçam de valorizar o que já teve e, sobretudo, o que hoje tem...

Sim, as férias passaram, ficaram as fotos de toda a gente em biquíni ou calções e com um bronze de fazer inveja, das paisagens e dos sorrisos de praia... O que se pode querer mais? Para os fãs das redes sociais é o expoente máximo, a oportunidade ideal para ter a "tal" foto, tirada com o bichinho secreto que "tal" ou "tais" pessoas vejam. Enfim, não publiquei as fotos, mas posso garantir-lhe que a minha estreia numas férias quase, quase, quase a sério foi excelente e, sim, já regressei ao trabalho, pronta para mais uma temporada de rotinas e descobertas.

Sabe, sinto-me ligeiramente irritada quando ouço as pessoas a falarem das férias com um ar nostálgico. O tempo em que puderam usufruir de tempo livre para fazer milhentas coisas, umas mais convencionais e baratas do que outras, é um luxo de que devem orgulhar-se. Mas não, falam como se o mundo terminasse com o fim do Verão...

Meu caro Doutor, em primeiro lugar, ter férias é sinal de que se trabalha e, por fim, nem todos se podem dar ao luxo de ir para fora cá dentro ou simplesmente ir para fora, mesmo lá fora.

Sabe, mais uma vez, não dei ouvidos ao apelo da Presidência (sim, sou uma rebelde... já não bastava recusar-me a dar o meu contributo para a taxa de natalidade e agora isto...) e optei por meter os pezinhos do lado de lá da fronteira, ou melhor, os pés e as rodas do "coche". Não me sinto nostálgica, antes pelo contrário, fico feliz por ter novas memórias de momentos, pessoas e lugares, por não deixar que o bichinho de querer mais se acomode e, sobretudo, por ter tido a oportunidade de partir sem me deixar limitar pela sensação de ter os tostões completamente contados. Fui e pronto!

Começo a aceitar que a vida mudou, de facto, mas questiono-me até que ponto a mudança não terá ocorrido interiormente. Fui eu quem foi para fora, dentro... de mim mesma. É certo que os tostões não são os mesmos, que os gastos são outros, mas sinto-me bem, sinto-me mais leve e recuso-me a desperdiçar tempo com o nó no estômago devido às contas para pagar. Desde que as principais estejam garantidas, resta definir prioridades e as minhas já não passam por pagar balúrdios pelos simples prazeres da vida. Sim, posso manter o requinte e pagar muito menos por isso!

Deixei para trás uma cidade inteira, apinhada de desconhecidos e uma minoria de pessoas que adoro. No entanto, posso pensar nessa experiência como mais umas férias com amigos que posso visitar regularmente e a quem levarei um sorriso em vez de queixas sobre o meu dia a dia. Ai, Doutor, a força de um sorriso é fantástica, sobretudo quando o partilhamos. É uma dádiva que se dá e recebe sem esforço, sem contrapartidas.

As viagens mais interessantes são aquelas que fazemos ao nosso interior. As férias potenciam a descoberta, mas o quotidiano tem sempre uma ou outra surpresa reservada e tudo acaba por fluir e encaixar.

Não, o mundo não acabará no fim do ano! Ele continuará a girar, independentemente do que lhe fizermos. Resta saber se aprenderemos a tempo que as coisas mais belas são as mais simples e, admire-se, em muitos dos casos... gratuitas!

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Tudo o que começa mal...

Boa tarde Doutor, posso?

Bem, estava para aí com um ar tão concentrado que quase parecia introspectivo. Diga? Ah, estava mesmo em pleno momento de introspecção! Acontece-nos a todos, não é?

Deixe lá, se a introspecção fosse o pior dos problemas do mundo estaríamos bem melhor. Acha que não? Hmm... Não falo de introspecção em excesso, apenas um pedacinho de tempo desperdiçado aqui e ali de modo a fazermos o cérebro trabalhar com futilidades... sim... dessas coisas que não matam, mas moem...

Por falar em "não matam, mas moem", hoje tive um "momento desperdiçado" quando me meti a pensar no significado da expressão "tudo o que começa mal acaba bem". A frase ajusta-se a trezentas situações na vida de qualquer pessoa, contudo, importa termos consciência de que a existência pouco tem de linear. A isso chama-se incerteza do futuro.

Se a frase fosse universalmente aplicável teríamos que fazer um raciocínio lógico sobre a mesma. Então, o que começa bem acaba bem? Ou o que começa bem acaba mal? E naqueles casos em que as coisas nem chegam a começar? Diríamos que o que não começa mal acaba bem?

Eu sei, eu sei... Tendencialmente, não se questionam os "clichés", mas quem questiona tudo tem que questionar as frases feitas.

Há pouco tempo fui surpreendida por uma criança com uma dúvida simplista e perfeita sobre a expressão "estar no ponto" "Qual ponto?" Perguntou-me... Pois, Doutor, qual ponto? Na verdade, atiramos frases feitas para o ar sem termos noção do que significam. Enfim, falamos de "boca cheia"! Hmm, lá está... Boca cheia de quê? Palavras? Parvoíces? Além disso, falar de boca cheia é feio!

Continuando o conto sem lhe aumentar um ponto... O facto de algo começar mal não implica que termine da mesma forma... No entanto, é uma ideia um tanto ou quanto tendenciosa, com a esperança implícita de que tudo irá melhorar. A vida nem sempre é assim, mesmo quando parece que andamos a "laurear a pevide". (Já agora, consegue explicar-me como se laureia uma pevide?)

Ok, pode dizer-me que sentimos quando "batemos no fundo" e que depende da força de cada pessoa para voltar a subir. Eu respondo-lhe que não é fácil nem difícil. Basta que o ser humano não complique. Temos que ser práticos e estipularmos as nossas prioridades.

Eu tenho como prioridade não ficar no fundo, de provar a mim mesma que sou capaz de chegar ao limite e ultrapassá-lo se me apetecer. "No fundo" (mais uma!), trata-se do mesmo de sempre, sentir o presente da forma como queremos e não nos perdermos em devaneios ridículos de como teria sido a vida se...

Doutor, se a vida seguiu por um caminho que não o desejado vamos fazer o quê? Sentar-nos no cruzamento das várias possibilidades a choramingar por não conseguirmos voltar para trás? Quem sabe se mais à frente, no caminho para o qual a vida nos empurrou, não nos espera algo melhor, mesmo que não se vislumbre da encruzilhada?

Sou da opinião que quem for louco o suficiente para conquistar o que quer tem grandes hipóteses de o conseguir. Não se trata de voltar atrás, mas sim de marcar um novo ponto de encontro com o que inicialmente pareceu perdido. Ah, e que bem sabem alguns reencontros na altura certa...

Não tenho a agenda cheia de reencontros, mas sei que muitos acontecerão num ambiente diferente e propício a novas descobertas, longe do sitio onde "Judas perdeu as botas" (mais uma frase que não faz sentido... É impressão minha ou em qualquer obra de arte sacra os apóstolos usam sandálias? Judas comprou as botas com os trinta dinheiros de que tanto se fala?).

Enfim... Se a vida me empurra não o sinto. Não quero voltar atrás e anseio pelo que me espera mais à frente sem deixar de usufruir desta etapa do percurso.

Para já, vou caminhando, ciente de que não importa se a caminhada começou bem ou mal, simplesmente começou e continua...

Desde que vá "tendo para os alfinetes" e não deixe que a vida fique em "águas de bacalhau" está tudo bem!

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

A Tia Pallete III

Olá Doutor, como tem passado?

É verdade, nem parece meu regressar ao consultório tão cedo, mas tinha que partilhar consigo o meu fim-de-semana, no qual o grau de introspecção voltou a atingir picos preocupantes.

Perante tamanha agonia, achei que a melhor forma de sobreviver a uma crise tão aguda seria fazer uma visita à tia Pallete quase um ano depois dos dias em que passei na casa dela.

A tia Pallete mal me viu chegar torceu o nariz "Oh filha, quando te perdes para estes lados não é bom sinal...". Não lhe soube explicar imediatamente o que se passava porque, na verdade, nem eu sabia muito bem o que me apertava o estômago, mas quando me preparava para iniciar uma explicação que não a fizesse explodir nos primeiros minutos da visita, ela interrompeu-me (como tanto gosta de fazer) e atirou para o ar "Ai, ai... daqui consigo perceber que estás com a alma magra, o que se passa? "

Ganhei coragem e fiz a pergunta que não me tem deixado a cabeça nos últimos tempos "Tia, tenho que lhe perguntar uma coisa e foi essa a razão pela qual me meti a caminho. Acredito que não tenha a resposta, mas aqui vai. Para onde vai o Amor durante os anos em que não o partilhamos de forma pura?".

Ai, doutor, a cara dela contorceu-se de tal maneira que eu fiquei em pânico, "Pronto, vai soltar o cão e fazê-lo crer que sou um bife... Eu sabia! Esta mulher não admite tamanha introspecção."

Ela inspirou fundo, olhou para o céu e sorriu. Sim, doutor, a tia Pallete sorriu! Pegou-me nas mãos e sussurrou "Eu sabia, essa cabecinha devia descansar mais. Vá, segue-me, hoje não falamos mais de ti porque o teu corpo pode estar aqui, mas a tua mente ainda não deixou o ponto de partida!".

A tia tirou-me a mochila das costas e entrou, atravessámos a casa e sentámo-nos nas espreguiçadeiras da varanda que dá para um imenso campo verde. Ali ficámos durante o resto da tarde a ver o dia a adormecer lentamente. Quando anoiteceu, perguntou-me "Já chegaste aqui?". Assenti e ela encaminhou-se para dentro de casa, deixando no ar a frase "Óptimo, não interessa como partes de um sítio, interessa como enfrentas a viagem que tens pela frente.".

Naquela noite fiquei no mesmo quarto da outra visita, que se mantém simples e despido, até que fui acordada pela tia Pallete, vestida com uma camisa de dormir amarela às flores. "Anda, tenho algo para te mostrar!"

"Oh tia" resmunguei "é de noite. Aconteceu alguma coisa?"

"Levanta-te, as horas do dia nada têm a ver com os horários da vida. O mundo e o tempo nunca dormem. Hoje iremos fazer-lhes companhia.".

Caminhámos descalças e em silêncio pela terra quente durante quase uma hora. Doutor, não sabia o que pensar. Para onde iríamos? A paisagem era fantástica, as estrelas eram tantas que na linha do horizonte se fundiam com a vegetação com tal doçura que me senti a sorrir por dentro por fazer parte daquela cumplicidade.

Chegámos à margem de um lago, onde estava atracado um pequeno barco a remos. A tia Pallete entrou e disse baixinho "Vamos remar um pouco".

Estávamos a meio do lago quando me pediu para parar. "Sabes" disse-me ela "Quando chegaste fizeste uma pergunta importantíssima que todos se deviam colocar de vez em quando. É óbvio que não tenho a resposta ideal, mas vou partilhar contigo o que o passar dos anos me ensinou.".

"O Amor..." continuou ela enquanto acendia um cigarro "O Amor, da forma como o conheces, não existe, é uma invenção".

"Diga tia?? Como não existe? Temos momentos da vida em que o sentimos em cada centímetro do corpo, a respirar pelos nossos pulmões, a sorrir com os nossos músculos, a vibrar em cada veia...".

"Minha querida sobrinha, já sentiste isso?"

"Sim" respondi convicta (é verdade Doutor e creio que todos passámos por estados quase patéticos em que os grandes problemas do mundo parecem pequenos quando comparados com o tamanho da nossa felicidade).

A tia Pallete deu uma gargalhada e continuou a sua teoria "Não, filha, o que sentiste foi uma alegria passageira, um estado de espírito positivo potenciado pela presença de outra pessoa à qual atribuíste a causa do momento. No entanto, enganas-te quando pensas que o Amor pode resumir-se a algo passageiro. Todos andamos em busca da felicidade que conhecemos através de guiões bem escritos a puxar ao sentimento para fazer render as bilheteiras.".

"O Amor, nesse sentido, é uma invenção porque não existe na forma como nos ensinam desde crianças e sabes porquê? Porque o ser humano tem uma necessidade extrema de ter algum tipo de prova em como o mundo é muito mais do que aquilo com que se depara no quotidiano. Deixamo-nos levar por ideias feitas, por conceitos, por ideais alheios. Todos eles criações de outras pessoas em fases da vida que nada têm a ver com aquela em que eu ou tu nos encontramos."

"Se me perguntares o que é o Amor eu respondo-te é isto, é tudo o que te rodeia. São todas as batidas do teu coração e apenas se torna realidade quando essas batidas são partilhadas. Existem vários tipos de amor, uns mais intensos que outros, mas cada um deles é fundamental para que o mundo não se torne num espaço oco, cheio de peças soltas."

"Os sentimentos apenas existem porque o mundo existe como um todo e não existimos sozinhos. As pessoas têm a tendência de ficarem à espera de sinais fechadas em casa. Filha, os sinais estão lá fora. Poderás não saber interpretá-los à primeira, mas por vezes o destino dá uma mãozinha e a partilha acontece! Não te percas nas tretas que te venderam, vive cada minuto e sente o que te rodeia de forma pura. Quando menos esperares, darás por ti a acreditar numa partilha que sempre existiu, mesmo quando não tinhas provas concretas da sua existência."

"O Amor existe simplesmente porque faz parte dos planos do destino desde... sempre, tal como tu, tal como eu, tal como todos aqueles com quem nos vamos cruzando. Cada um deixará a sua marca, mas o que é verdadeiro permanece o tempo necessário, nem mais um segundo e, por vezes, essa permanência dura duas vidas inteiras... unidas, partilhadas, sentidas não de igual modo porque ninguém é igual, mas numa harmonia madura e consciente.".

A tia Pallete acendeu mais um cigarro e concluiu o seu longo monólogo enquanto olhava as estrelas "Por qualquer razão temos uma longa esperança de vida. Esperança essa que continuo a defender que cresceu não apenas devido aos avanços da ciência, mas porque o ser humano se tem estupidificado com o passar dos anos e precisa de mais tempo para compreender a essência das coisas em vez de se perder a deambular pelas aparências e sinais que teima em interpretar da forma como lhe dá jeito. Minha querida sobrinha, o Amor apresenta-se puro, não precisa de interpretações.".

"Sabes, para alguns o tempo continuará a ser insuficiente e irão desperdiçar a felicidade devido à forma como a procuram... Não sejas um deles! ".

Doutor, mais uma vez a tia Pallete surpreendeu-me. Naquela noite dormi muito pouco porque me deitei a pensar no assunto. Não é fácil perceber que cada partilha é única e que gera em nós uma reacção diferente, que o Amor não pode ser tipificado ou rotulado e que apenas saberemos do que se trata quando descobrirmos que amamos verdadeiramente.

Sabe o que realmente importa? A vida continua e quando tomamos consciência de que desperdiçámos partes importantes do passado com minudências passageiras atingimos a clarividência necessária para seguirmos caminho acompanhados pela certeza de que conquistaremos o futuro.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Areia...

Boa tarde Doutor,

Este calor mexe com qualquer um, chiça! Nem sei o que me apetece fazer... se devo ceder à moleza ou pegar no carro e meter-me a caminho de uma praia qualquer, de preferência deserta e a dez minutos de carro de uma metrópole cheia de coisas, estados de espírito, experiências, vidas boas, más e assim assim...

Hoje apetece-me dizer coisas sem nexo, entrar no verdadeiro mundo do devaneio e provar a mim mesma que é possível fazer uma viagem até à loucura e voltar.

Não o faço com ânsia ou desespero, apenas porque sim, apenas porque sinto dentro de mim uma ténue urgência em acreditar que a loucura se apura com a idade e que de nada vale lutar contra o tempo.

Sabe, sinto-me a envelhecer...

Não, doutor, não é o terror anti-rugas ou algo do género. Trata-se de algo mais profundo, de uma estranha paz que se vai entranhando. É curioso, a menina faladora da comunicação não tem palavras para descrever o que sente... É tão ridículo que chega a dar vontade de rir.

A palavra que a mente me propõe é... ritmo. Sim, doutor, ritmo.

Sinto-me a crescer, a encontrar novos ritmos, a viver uma nova fase da vida que se prolonga, sem ter pressa de mudar, mas consciente de que o meu lado nómada nunca se dissipará. Talvez seja a isto que chamam de maturidade...

Não sei onde estarei daqui a um ano, mas deixei de me preocupar com isso porque sei que farei as malas quando me apetecer, isto é, quando deixar de me entusiasmar com aquilo que o meu dia-a-dia me dá. Quem sabe se não me encontrarei no mesmo sítio... ou talvez dê comigo longe daqui com mais uma experiência guardada na mala de viagem... não quero saber....

Diga, doutor? O que procuro?

Hmmm, perguntas difíceis... O que procuro? O que quero da vida?

Em primeiro lugar, deixei de querer sentir-me cem por cento feliz, o que não é de todo negativo. Ninguém com alma de nómada conquistará esse estado porque quererá sempre subir ao monte seguinte depois de atingir aquele a que se propôs.

O que quero? Quero ter uma vida com momentos felizes, verdadeiros, intensos.

A tia Pallete tinha razão quando falava dos castelos de areia. A única diferença é que, actualmente, tenho a estranha certeza de que terei o meu castelo, o mais belo castelo que alguma vez vi, construído com a areia trazida pela imensidão de pessoas com as quais me fui, vou e irei cruzando durante a vida. A "obra genuína" será minha, mas a areia virá de toda a parte.

A vida é assim, ganha forma com cada grão de areia que nos entregam de bom ou mau grado. Não me interessam as quantidades que recebo de cada um, o que importa é que terei o meu castelo e não tenho pressas para o terminar porque é na construção que devemos ter gozo, não apenas no produto final.

Estou numa fase em que sinto plenamente a construção do castelo e decidi que não quero passar a vida a correr, com medo que o tempo me apanhe, com receios antecipados, com dúvidas de como será o dia seguinte...

Quero continuar a entregar-me aos gritos da alma com a calma que me apetecer ter a cada momento. Nunca na ânsia de que me ouçam, mas com vontade de me ouvir a mim mesma e saber que estou viva, de que sou nómada, de que não me calo, de que me questiono e de que vale a pena construir simples castelos de areia num mundo que se vai perdendo aos poucos devido à vontade ignorante de possuir grandes propriedades...

Para quê entregar-me aos sonhos se o castelo é real? Venha mais areia!