segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Adrenalina

Boa noite, Doutor, como está hoje?

Cruzei-me com a Dona Deolinda nas escadas do prédio. Já sentia saudades dela. Tenho aparecido quase sempre sem avisar e a horas impróprias, o que dificulta todo o processo de trocar um sorriso meu por um número infindável de cusquices dela. É incrível perceber como o mundo daquela senhora tem alicerces em coisas simples e, aparentemente, fúteis.

No entanto, admito que apesar de não ter os mesmos interesses que eu, a Dona Deolinda merece admiração por manter a capacidade inabalável de se maravilhar com o que a rodeia (mesmo tratando-se de vidas alheias).

Passamos a vida a falar de "grandes obras" quando, na verdade, a verdadeira felicidade é potenciada regularmente através da simples partilha do ar com aqueles que tornam os pormenores grandes, as palavras cheias e a alma viva.

Este fim-de-semana fui mergulhar em multidão, reencontros e outros deleites para os sentidos: vi gentes, partilhei memórias, pude confirmar que o cheiro das castanhas na Baixa continua a ser especial (a poucos metros dos rasgos de campo existentes nas flores silvestres que por ali se vendem), partilhei sonhos, deixei-me transportar para o "Le Fabuleux Destin d'Amelie Poulain" por um carrossel, partilhei planos e apaixonei-me pelo pôr-do-sol no Tejo dourado.

Perante tanta coisa, confirmo que não pertenço a lado algum e que nunca existirão âncoras que me façam parar de rumar ao infinito. Porquê? Porque a incerteza da Vida se desvanece nos momentos em que conseguimos ter no mundo a nossa casa e nos outros o nosso lar.

Dedicamos demasiado tempo às mesmas dúvidas de sempre e desesperamos sem ganharmos consciência de que cada dificuldade deve ser encarada como um desafio.

Quer maior adrenalina do que viver numa geração em que a palavra "estabilidade" foi apagada dos dicionários? Acordar todos os dias numa época que desconhece o "longo prazo"?

Está na altura de aprendermos a respirar em conjunto e assumirmos a loucura que nos corre nas veias, saboreando o luxo de vivermos sem passarmos o tempo a provarmos que somos os seres excepcionais que a sociedade tão mediocremente idealizou.

Arriscar, fazer malas, viver com os erros, ficar, partir, rir sem razão, correr descalços pela terra e pelo alcatrão, pedir conselhos a um desconhecido, dizer sim, amar, dançar por casa, abraçar uma árvore, fumar um cigarro com um indigente, tocar os outros e sentir neles um arrepio, criar, chorar no cinema, mudar de sofá, de casa, de rua, de país, de vida... ou ficar no mesmo sítio e fazer coisas diferentes todos os dias.

Sobra-nos viver o hoje, sem as tretas do carpe diem estandardizado. Que se siga em frente, saboreando as gotas de vida que o tempo nos dá sem perdemos a certeza de que o mais importante não se trata do que pretendemos conquistar, mas sim das pequenas grandes coisas que nos conquistam pela sua simplicidade.

Não, doutor, não é fácil e todos os dias recebemos notícias de alguém que desistiu de lutar. No entanto, o mundo precisa de pessoas que acreditem no sol para lá das nuvens e transmitam esse conhecimento.

Acredito que o futuro deste planeta não passa por grandes teorias, mas sim por gestos simples e quotidianos, pelos sorrisos que partilhamos, pela beleza que transmitimos através de gestos espontâneos.

A confiança no futuro passa pela confiança nos outros e, por mais contraditório que possa parecer, não podemos limitar-nos a pensar globalmente, temos que agir localmente. Urge lançar pequenas sementes de esperança aqui e ali, darmos e assumirmos que gostamos de receber para que a consciência global ganhe raízes e ramos fortes.

O mundo não sobreviveu devido aos grandes feitos esporádicos, mas sim aos pequenos gestos de cada dia, às pequenas sementes de Amor que se lançam na Terra a cada momento. Não falo dos grandes amores que tanto se procuram. Falo dos pequenos, daqueles que nos aconchegam com o calor humano de um olhar cúmplice.

Sejamos pioneiros ao lançar grãos do futuro sem medos nem lamentos.

Sejamos crianças assumidas com as nossas birras de adultos por carrinhos, casinhas e paísinhos.

Sejamos humanos conscientes dos actos animalescos que cometemos.

Sejamos genuínos na forma de dar e receber.

Sejamos inovadores sem perder os ensinamentos do passado.

Sejamos visionários, arriscando soluções para mudar o mundo.

Sejamos loucos para passarmos da esperança aos resultados.

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